Arquivo mensais:junho 2007

um poema de juan gelman

sobre a poesia

haveria um par de coisas por dizer/
que não é muito lida por ninguém/
que esses ninguém são poucos/
que estão todos preocupados com a crise mundial/ e

com o assunto de comer a cada dia/ trata-se
de um assunto importante/ me lembro
quando tio juan morreu de fome/
dizia que nem se lembrava de comer e que para ele não tinha problema/

problema veio foi depois/
é que não havia dinheiro para comprar caixão/
e quando finalmente o caminhão municipal passou para levá-lo/
tio juan parecia um passarinho/

o pessoal do municipal olhou para ele com desprezo ou com desdém/ murmuravam
que eram sempre incomodados/
que eram homens e enterravam homens/ e não
passarinhos como tio juan/ especialmente

porque o tio foi cantando piu piu a viagem inteira até o crematório municipal/
e sentiram-se desrespeitados e estavam muito ofendidos/
e quando davam-lhe um tapinha para calar a boca/
o piu piu voava pela cabine do caminhão e eles sentiam que ouviam um piu piu na cabeça/ tio

juan era assim/ adorava cantar/
e não via por que não cantar depois de morto/
foi para o forno cantando piu piu/ as cinzas saíram e ainda deram uns pios/
os companheiros do municipal se deram com os sapatos cinzentos de vergonha/ bem mas

voltando à poesia/
agora os poetas passam muita dificuldade/
não são muito lidos por ninguém/ esses ninguém são poucos/
o ofício perdeu prestígio/ para o poeta está cada dia mais difícil

conseguir o amor de uma menina
ser candidato a presidente/ ser patrocinado por um mecenas/
que um guerreiro faça façanhas para que ele as cante/
que um rei lhe pague cada verso com três moedas de ouro/

e não se sabe se é porque acabaram as mulatas/ os mecenas os guerreiros/ os reis/
ou simplesmente os poetas/
ou foram as duas coisas e é inútil
quebrar a cabeça com uma coisa dessas/

bonito é saber que a gente pode cantar piu piu
nas horas mais estranhas/
tio juan depois de morto/ eu agora
para você gostar de mim/

Esta tradução foi publicada pela primeira vez em 1998 no www.tanto.com.br. O poema faz parte do livro hacia el sur. no vídeo, o original na voz do autor.

um poema de juan gelman

outras partes

juan gelman

¿ouviste/ coração?/ vamos
com a derrota a outra parte/
com este animal a outra parte/
os mortos a outra parte/

que não façam ruído/ calados como estão/ nem
se ouça o silêncio de seus ossos/
seus ossos são animaizinhos de olhos azuis/
sentam-se mansos à mesa/

roçam dores sem querer/
não dizem uma só palavra de seus balaços/
têm uma estrela de ouro e uma lua na boca/
aparecem na boca dos que amaram/

passam notícias de seus sonhos/
arrastam suas lágrimas com uma toalhinha atrás como que varrendo o padecer/
como que não querendo molhá-lo/
para que o padecer estale e arda e faça assento aonde se sentar e pensar outra vez/

vamos/ coração/ a outro canto/
é ruim que não possas tirar os pés da tristeza/
embora seja tristeza que beija a mão que empunhou o fuzil e triunfou/
e tem coração e guarda em seu coração uma mulher e um homem passando como tigres pelo céu do sul/

uma mulher e um homem como tigres enjaulados na memória do sul/
beijando filhinhos que nunca mais irão crescer/
companheiros que nunca mais vão crescer a agora cosem
a terra ao ar/ cosem teu coração/ coração/ seus animais/

vamos com esta cadela a outra parte/
não temos direito de incomodar/
nosso único direito é começar outra vez
sob a luz do sol sereno/

os limites do céu mudaram
agora estão cheios de corpos que se abraçam
e dão abrigo e consolo e tristeza
com uma estrela de ouro e uma lua na boca/

com um animal na boca olhando o cintilar
dos companheirinhos que semearam coração
e levantam seu coração ardente
como uma aldeia de beijos/

(tradução: leo gonçalves)

olha aí o original:

otras partes

¿oíste/ corazón?/ nos vamos
con la derrota a otra parte/
con este animal a otra parte/
los muertos a otra parte/

que no hagan ruido/ callados como están/ ni
se oiga el silencio de sus huesos/
sus huesos son animalitos de ojos azules/
se sientan mansos a la mesa/

rozan dolores sin querer/
no dicen una sola palabra de sus balazos/
tienen una estrella de oro y una luna en la boca/
aparecen en la boca de los que amaron/

pasan noticias de sus sueños/
arrastran sus lágrimas con un pañuelito detrás como barriendo el padecer/
como no queriendo mojarlo/
para que el padecer estalle y arda y haga asiento donde sentarse a pensar otra vez/

nos vamos/ corazón/ a otra parte/
hace mal que no podrás sacar los pies de la tristeza/
aunque es tristeza que besa la mano que empuñó el fusil y triunfó/
y tiene corazón y guarda en su corazón una mujer y un hombre pasando como tigres por el cielo del sur/

una mujer y un hombre como tigres enjaulados en la memoria del sur/
besando hijitos que nunca más van a crecer y ahora cosen
la tierra al aire/ cosen tu corazón/ corazón/ sus animales/

vámonos con esta perra a otra parte/
no tenemos derecho a molestar/
nuestro solo derecho es empezar otra vez
bajo la luz del sol sereno/

los límites del cielo cambiaron/
ahora están llenos de cuerpos que se abrazan
y dan abrigo y consolación y tristeza
con una estrella de oro y una luna en la boca/

con un animal en la boca mirando el centellear
de los compañeritos que sembraron corazón
y levantan su corazón ardiente
como un pueblo de besos/

leo gonçalves e juan gelman na unipac

no próximo sábado, dia 16 de junho, estarei na unipac de congonhas, a convite das professoras juliana leal e karla cipreste, para uma conferência-leitura da e sobre a poesia de juan gelman. aproveito para começar a desenvolver uma proposta que venho pensando de unir uma performance poética a uma apresentação conceitual da poesia. vamos ver no que dá.

exílio

aqui/palavra que foi cão

pela cavala que dizia/
já não há nada a fazer/
está a luz/que tanta sombra fez/

por isso você dói tanto/
beleza?/me bate
como se fosse seu irmãozinho?/
boca de seu arrabalde?/

o que é você?/quem é você?/diga-me um pouco?/
já não será daqui quando nos fomos/
nem me deixa tirar a mão
do fogo de não ser/

(do livro isso. unb, 2004)

samba do compositor recebe nei lopes [atualizado]


os freqüentadores do salamalandro sabem o quanto admiro esse sambista lingüista historiador da negritude brasileira, uma das melhores cabeças que já apareceram no país. quando postei esse cartaz da turma do samba do compositor, estava decidido a ir. mas chegado o dia, descobri que infelizmente não vai rolar. muito trabalho a fazer. uma pena.

que os deuses da áfrica tragam de volta uma outra chance boa de vê-lo cantar.

e peço a todos que puderem, que vão. e me contem
imperdível.

salve nei lopes!

centro cultural banco do brasil itinerante – inscrições abertas para a etapa bh

o centro cultural banco do brasil itinerante está com inscrições abertas para etapa belo horizonte. o evento acontece na cidade de 3 a 15 de julho e o período de inscrições vai até a próxima sexta-feira.
há vagas para as áreas de artes cênicas, plásticas, música, idéias (palestras e encontros, etc) e programas educativos (oficinas, cursos, etc).
clique aqui para conhecer o regulamento: ccbb – etapa bh

notas sobre a vanguarda distraída

depois de escrever o post anterior, recebi inúmeros emails, cartas e mensagens de celular me criticando pelo termo criado para designar a poesia do meu amigo. a linha principal da crítica, (a única que acho pertinente) propunha que, sendo vanguarda, ninguém poderia ser distraído. era, portanto, uma contradição em termos. um dos meus críticos mais duros, inclusive, fez questão de ressaltar que numa guerra, a vanguarda exerce um papel essencial: é sempre o primeiro batalhão a enfrentar o inimigo e que portanto ninguém podia estar neste posto distraído.

isso tudo me divertiu muito. e resolvi, como resposta, acrescentar algumas notas:

1. não se trata de contradição. como vocês puderam notar, a poesia do anderson é mordaz e atenta ao melhor do que acontece ao seu redor. alguém terá notado também que a minha geração cresceu sob o poder daquilo que chamam “cultura de massas” ou “entretenimento” (vulgo xuxa, fausto silva, ana maria braga e outros lixos enlatados). vocês não queriam que eu dissesse: “vanguarda entretida”, queriam?

2. jerzy grotowski foi um importante teórico do teatro que nos anos 60 propunha que a ação teatral se fazia graças a uma difícil tensão que ocorre entre o ator e o espectador, sendo que este ocupa um papel opressor por não se ver, na maioria das vezes, preparado para curtir uma peça e sim para consumi-la. no começo dos anos 70, cansado desta tensão, grotowski decidiu abrir mão dela para produzir um teatro total. ao final, ele diz: se vocês quiserem considerar isto teatro ou não, pouco me importa.

grotowski é um precursor da vanguarda distraída.

3. me diverte muito a idéia de que alguém venha a levar a sério o título que dou aos meus contemporâneos (incluindo-me a mim mesmo). onde já se viu… vanguarda distraída.

4. podia escrever um manifesto. até mesmo porque manifestos já estão fora de moda. por isso mesmo. cairia bem.

5. enganam-se redondamente aqueles que (como o frei betto) ficam por aí dizendo que a minha geração só possui alienados despolitizados que só querem fazer parte do sistema mundial de competitividade proposto pelo capital tio sam. o que nós queremos é comer todo mundo. discretamente, como bons mineiros. numa grande mordida de prazer (se o prato for nutritivo) ou num grande bocejo (se o prato só tiver carboidratos – como o frei betto).

6. fico triste de ver como que toda e qualquer subversão é rapidamente assimilada pelo sistema mundial de consumo. che guevara, lenin, leon trotsky, jozef stalin, marilin monroe, john lennon, jim morrison, bob dylan, cicciolina, andy warhol. todo mundo pode ser tranquilamente jogado na mesma lixeira. por outro lado, vejo que o pessoal até que ganha um dinheirinho com isso. o que não é nada mal. contanto que sobre um pouco também para os poetas. um leitinho de vez em quando, as crianças agradecem.

7. para o meu amigo guerrilheiro, com seu papo de inimigos, eu confesso: fui eu que matei paulo leminski. e enquanto agonizava com ar divertido, ele me explicava a doutrina dos epicuristas e me repetia sempre como num refrão: “distraídos venceremos”

Anderson Almeida e a vanguarda distraída

O poeta Anderson Almeida (na foto lendo o livro de Léopold Sédar Senghor) é um cara curioso. Muito vivo, exageradamente discreto. Quando nos conhecemos, ele não gostou dos meus poemas: ficamos grandes amigos. Lembro que em 1997, quando BH se preparava para uma celebração dos seus 100 anos, tínhamos o hábito de frequentar os bares da “Poesia Orbital”. Na ocasião tinha sempre algum poeta orbital falando versos em algum palco. Certa vez ele me disse: “cada vez que vejo um ator global falando versos de um poeta orbital, tenho mais certeza de que palcos não são o meu forte…” ou algo assim.

Nessa época a gente vivia intesamente este poema dele:

curtametragem

o homem pulou da ponte
e ao erguer a vista
e contemplar o horizonte
amou a vida e não viu por onde
retomar a subida

.

Desde então, a gente cometeu muita vida. Um dia ele me aparece com um calhamaço de uns 200 haicais completamente originais e inesperados. O silêncio dele nos últimos tempos me faz pensar neste haicai dele:

estou mudo
como borges era cego
e beethoven era surdo

Ele é um dos caras mais originais da minha geração. Nunca fez muita questão de mostrar o que escreve. Esconde dos holofotes, descansa no liso. Ele faz parte de uma vanguarda que chamo de “vanguarda distraída”. Linguagem urbana, vitalidade em cada vírgula. No meio da distração, ele cisma de vez em quando de enviar um poema para algum concurso. Ganha, claro. Lembro até que quando o conheci, tinha ganhado um prêmio de honra ao mérito num concurso de poesia latino-americana realizado na Alemanha.

Depois ele ficou entre os 5 melhores de uma revista chamdada Ipsis-Literis. Quando li os versos que ficaram em primeiro, gostei mas não amei. Apenas confirmei a insuficiência desses concursos. Os poemas que ficaram em primeiro lugar tinham todo um clima de aplicação das teorias aprendidas na academia, enquanto que nos poemas do Anderson (que mereciam de longe o primeiro lugar) parecia que a língua estava acabando de ser inventada, sem compromisso com a história da literatura, sem compromisso com ninguém, originais e consistentes. uma pena eu não estar com eles aqui (no meio de muitas mudanças, meus livros ficaram dispersos e não encontro mais nada).

Mas em todo caso, vou deixar dois outros, publicados no jornal estilingue #3 em 2004 enquanto ficamos na torcida para ele lançar logo um livro:

as ruas em alta velocidade se estraçalham em esquinas
as estradas não têm quinas

as ruas e as estradas tentam todos os meios de despitar-se
em curvas, em pontes, em bifurcações

as ruas de mãos dadas
uma rua sem saída é uma rua só

há poemas pobres e planos como ruas

o poema é uma rua fantasma
que atravessa uma cidade fantasma
onde passam navios fantasmas
que deixam garrafas com manuscritos

e que manuscritos
enchem de amantes submarinos
as cidades em ruína

.

durmo de olhos abertos
meu irmão e seus brinquedos de guerra
minha irmã e suas guerras de brinquedo
disputo com os escorpiões meus sapatos
pendurei o espelho e caíram todos os quadros
vasculho cabides e gavetas
mas nada de meu
infilitra na solidão uma calma cotidiana
chove
moro em um morro forte onde uma árvore grande foi derrubada por um raio
ter uma moto e acelerar sem temer a árvore atravessada
chuva que diz sim em clarões

.