Arquivo mensais:abril 2008

outro poema do aimé césaire

para dizer…

para revitalizar o rugido das fosfenas
o âmago oco dos cometas

para reavivar o verso solar dos sonhos
sua lactância
para ativar o fresco fluxo das seivas a memória dos silicatos

fúria dos povos sumidouro dos deuses seu salto
esperar a palavra seu ouro sua orla
até a ignífera
sua boca

pour dire…

pour revitaliser le rugissement des phosphènes/le coeur creux des comètes//pour raviver le verso solaire des rêves/leur laitance/pour activer le frais flux des sèves la mémoire des silicates// colère des peuples débouché des Dieux leur ressaut/patienter son or son orle/jusqu’à l’ignivome/sa bouche

este outro, aimé césaire publicou no livro “moi, laminaire…”, 1961

um poema de aimé césaire

entre outros massacres

com todas as forças o sol e a lua se entrechocam
as estrelas caem como testemunhas maduríssimas
e como um carregamento de ratos acinzentados

não tema nada apronta as tuas grossas águas
que tão bem carregam a berma dos espelhos

puseram barro nos meus olhos
e veja eu vejo terrivelmente eu vejo
de todas as montanhas de todas as ilhas
não resta mais nada a não ser alguns tocos ruins
da impenitente saliva do mar

entre autres massacres

de toutes leurs forces le soleil et la lune s’entrechoquent/les étoiles tombent comme des témoins trop mûrs/et comme une portée de souris grises//ne crains rien apprête tes grosses eaux/qui si bien emportent la berge des miroirs//ils ont mis de la boue sur mes yeux/et vois je vois terriblement je vois/de toutes les montagnes de toutes les îles/il ne reste plus rien que les quelques mauvais chicots/de l’impenitente salive de la mer

este poema foi publicado por aimé césaire no livro “soleil cou coupé”, 1948

adeus césaire

hoje eu soube, triste e por uma coincidência, que o poeta martinicano aimé césaire faleceu anteontem, dia 17 de abril. confesso que a notícia me deixou especialmente triste. tenho lido e traduzido tanto os escritos dele que já chego a sentir que é um grande amigo. fazia parte dos meus planos ir a fort-de-france um dia desses e dar nele aquele abraço. lui rendre mes hommages. homenagens à sua longa vida de inteligência e generosidade.

o funeral de césaire acontecerá amanhã, ao final de três dias de cerimônias e celebrações a esse homem que considerava as palavras da poesia as suas “armas miraculosas”.

irmão espiritual de léopold sédar senghor, aimé césaire é autor de algumas dezenas de livros de poesia, teatro, ensaio. sua rebeldia e a intensidade da sua palavra, muito diferentes das de senghor, contagiaram diversas gerações de jovens nos dois lados do oceano atlântico.

césaire morre aos 94 anos. foi prefeito da sua cidade durante 56 anos. viveu a maior parte da sua vida no “pays natal”, onde fugia veementemente da mídia, e também onde recebia os homens mais importantes da frança e do mundo. pode-se dizer sem medo que o mundo hoje é diferente (e melhor) graças a esse senhor. citando um poema meu, césaire “morreu de tanto viver”. mesmo assim, fará falta.

etnopoesia no milênio

livro: \ a etnopoesia, muito mais do que uma interseção entre a antropologia e a poesia, é uma mudança de paradigmas. o ocidente perdeu muito tempo com a discussão “o que é poesia”, sempre enxergando-a como um braço dos ensinamentos gregos. com isto, foi esquecido algo simples e óbvio para qualquer pessoa interessada nessa camada sutil que paira sobre as coisas sobre a qual deram o nome, repito, de “poesia”: que a poesia pode estar em qualquer coisa ou lugar.

o trabablho de jerome rothenberg começou quando, em 1967, lançou um livro sui generis chamado “technicians of the sacred”, onde fazia uma grande antologia de poemas-textos-dizeres de xamãs & pajés do mundo inteiro. desde então, a revolução que ele vem propondo é convulsiva, transbordante. ao lado de seus próprios poemas, já publicou antologias de poetas judeus, poetas dos campos de concentração nazistas, poesia xamã das américas, antologias renovadoras onde figuram poetas do mundo inteiro, tais como um poeta-xamã-esquimó, um antigo e anônimo escriba do egito, pound, poetas concretistas, maria sabina, os poetas da negritude e por aí vai.

este livro, “etnopoesia no milênio”, é o primeiro do autor (talvez mesmo sobre o tema) a ser traduzido e/ou publicado no brasil (40 anos de atraso!).

quem quiser ler coisas de/sobre Rothenberg, eis alguns links:

rothenberg antologizado e entrevistado por rodrigo garcia lopes

jerome rothenberg no ubu, a maior referência na web sobre a ethnopoetics, com soundings, visuals, poems & discourses.

um poema de sousândrade

Flirtations
(Manhattanville)

Ninguém ande à encruzilhada
Por noites de São João –
Vejam a mal-assombrada,
Meninas! “Oh, a visão!…”

– Cora, qual é tua sorte?
“Na Quinta Avenida, à corte,
Casarei.”
– Sempre never cada Fanny?
“Morrerei.”
– E tu, Augusta, rubores?
Vão ver, que sorte de amores…
“Eu sonhei.”

Pior do que encruzilhadas
De visões; portas e escadas
Destes céus de Manhattan
Com que aí stão-se aninhando
Alvoradas? matinando
Toda a noite até manhã?
“Fogo! fogo! é rato! é gato!”
– Matinada de Babel!
Meninas, mudem de quarto,
Há mais quem durma no hotel!

São as três; doirada tarde,
Vêm da escola e em risos ledos,
O olhar longínquo de que arde,
Atiram beijos co’os dedos.

Ora, estudando as lições:
“Diga, diga, as professoras
Deram tese – Os dois vulcões
Maiores -. Belas senhoras,
Há crescenças… sobre os Andes
Que são da terra as mais grandes…
Rindo Fanny, Cora alada
E ar Augusta de graduada –
“Andes são serras: vulcões,
Sir! os maiores do mundo!?”
– Oh! que estão no céu profundo
Chamas lançando em festões?
“Yes! Yes!”
– Que rugem? ‘strugem
Com lavas bravas?!
“Yes! Yes!”
– São, my girls, dois corações…
“Oh! oh! oh!”

um poema do livro: “Sousândrade: inéditos” (org.: Frederick G. Williams e Jomar Moraes). São Luís: Departamento de Cultura do Estado, 1970

como era gostoso o meu francês

Um filme precursor, de Nelson Pereira dos Santos, rodado em 1971. Talvez o primeiro a trazer para as telas uma visão renovada da “antropofagia” de Oswald de Andrade. Relata a história de um homem que, tendo chegado ao Brasil na frota do viajante Villegagnon, acaba ficando por aqui. O francês é capturado por um grupo de tupinambás que pretende comê-lo. Porém, durante a preparação da carne, acaba passando um longo tempo junto à tribo, o que o leva a adotar hábitos dos indígenas. O filme é falado em tupi e francês (obedecendo às origens de cada personagem), mas há alguma passagem em português lusitano.

O filme foi proibido em sua época pela ditadura militar e conseguiu a licença em seguida com o argumento de que nudez de índio não é pornografia. Mas a liberação, só com censura 18 anos.

Com uma visão irônico-crítica dos relatos dos europeus que vinham para as praias brasileiras, afastado dos tiques típicos da arte partidária, procurando uma visão o menos caricatural possível do indígena brasileiro, o filme evidencia, contudo o olhar do estrangeiro que chega por aqui. O que faz com que o diferente, o “primitivo” se torne elemento de intolerância, irritação e chacota por parte de quem se quer “civilizado”.

Uma vez inserido na cultura brasileira, o estrangeiro acaba por se dissolver nela. Não sem uma certa paixão que chega a ser erótica e romântica. “Só a antropofagia nos une”, repetiria a indiazinha com quem o francês se amasia. E logo, é feita a divisão das partes, do francês: “o braço é para o irmão do cacique, o outro para o guerreiro mais forte, o pescoço é da amante…” e assim por diante. O jovem (que não chega a possuir um nome, no filme) quer levá-la de volta para a Europa. Ela se recusa. “Só a antropofagia nos une”. O pescoço já está prometido.

Recentemente, surgiu na cena cinematográfica uma nova onda: a de filmes falados em línguas mortas ou esquecidas. O filme “Desmundo”, outro filme excelente (dirigido por alain fresnot e baseado no romance homônimo de Ana Miranda) tenta reproduzir, depois de profundos estudos lingüísticos, o português da época de Pero Vaz de Caminha (isso sem falar dos filmes recentes de Mel Gibson, os paranóicos “Apocalypto”, falado na língua Maia, e “Paixão”, em hebraico, aramaico e latim).

Certa vez ouvi do senegalês Hamidou Sall uma citação de Césaire que era mais ou menos assim: “Há duas maneiras de se perder no mundo: uma é se diluindo na universalidade, a outra se dissolvendo no seu próprio íntimo”. A antropofagia, um modo de pensar incompreensível para europeus supercivilizados, é um modo de não se deixar dissolver, mas assimilar o outro em si mesmo. A existência deste filme é um alívio. Acredito cada vez mais que a antropofagia não foi suficientemente aproveitada pelo brasileiro que se sente ansioso por uma certa originalidade impossível.

Em tempos de globalização, a tendência de sermos engolidos por culturas hegemônicas é muito forte. Por outro lado, o brasileiro, que sempre quis ansiosamente ser “o outro”, preferencialmente um sujeito civilizado e civilizante, pensar o nosso lado selvagem é de extrema urgência. Especialmente sabendo que temos hoje cerca de 170 línguas faladas além do português no território nacional e que há muito mais quilombos escondidos do que se supunha. Pensar a antropofagia hoje, significa descobrirmos como olhar para dentro. Uma antropofagia como autofagia ou como rememoração desavergonhada de nossos hábitos canibais.

O filme agora pode ser visto no youtube. A cópia digital não está muito boa, mas dá para curtir.

dinheiro – um poema de phillip larkin

dinheiro

regularmente, o dinheiro me repreende:
“por que me deixa aqui parado, inutilmente?
sou tudo o que você jamais teve, em bens e sexo,
você inda pode conseguir, é só fazer o cheque.”

eu olho para os outros, o que fazem da grana,
decerto não a deixam debaixo da cama.
todos têm casa nova, carro novo, mulher nova:
dinheiro é vida, eis a prova.

de fato, têm muito em comum, se você reparar:
não se pode adiar a juventude até se aposentar,
gozo pago como for, o dinheiro que se poupa
não compra, no fim, mais que um prato de sopa.

eu ouço o dinheiro cantando. é como um panorama,
visto de altas janelas, duma cidade provinciana,
os cortiços, o canal, igrejas de agulhas em riste
ao sol da tarde. é profundamente triste.

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é um poema de phillip larkin em tradução de luiz roberto guedes.
encontrei na revista coyote número 15, inverno – 2007