CAHIER D’UN RETOUR AU PAYS NATAL

E eis que de repente força e vida me assaltam como um touro e a onda de vida circunda a papila do morro, eis que todas as veias e vesículas se apressam ao sangue novo e o enorme pulmão dos ciclones respira e eis o fogo tesaurizado dos vulcões e o gigantesco pulso sísmico batendo agora o compasso de um corpo vivo no meu firme abrasar.

Aimé Césaire
Diário de um retorno ao país natal

O Diário de um retorno ao país natal, nome que ganhou na excelente tradução da brasileira Lilian Pestre de Almeida, publicada em 2012 pela Edusp, é, acima de qualquer dúvida, um dos marcos mais importantes da poesia ocidental no século XX, ao lado (dentre outros) de Waste Land de T.S. Eliot, The Cantos de Ezra Pound e o Howl de Allen Ginsberg. Nada estranho, no entanto, que tenha passado às ocultas para os grandes diálogos sobre literatura nas escolas do Brasil, sempre ocupadas em discutir a poesia feita por autores brancos, sempre ocupadas em negar seu desinteresse pelas produções dos negros, sempre atenta em acordar valor às vanguardas europeias e em esquecer vanguardas de outros rincões do planeta, resumindo: das escolas eurocêntricas daqui que não nos ensinaram que um dos maior poetas do século XX foi um negro da Martinica. Talvez, inclusive, que o grande poeta do surrealismo talvez não tenha sido um poeta do surrealismo, propriamente, mas da Negritude.

Mas não é assim em todo o mundo. Aimé Césaire é tido como um dos maiores entre os maiores autores da língua francesa. Jean-Paul Sartre já declarava isso em 1948, assim como André Breton para quem ele era um negro que maneja a língua francesa como não há um branco capaz de fazê-lo. Sua importância foi crescendo, na medida em que o Cahier se tornou um marco para todas as literaturas do continente africano, obra primordial, lida em todos os idiomas possíveis e em todas as Áfricas possíveis, assim como em países do Caribe, nos Estados Unidos, na Europa e onde quer que se queira conhecer um poeta que, para além de sua riqueza laminar, pode ser considerado aquele que fez literatura anticolonial como ninguém, um rebelde da língua. De tal maneira que, ao falecer em 2008, o racista Nicolas Sarkozy (então presidente da França) não podia fazer menos do que enterrá-lo no Panthéon, honra concedida somente a dois outros escritores antes dele: Paul Valéry e Victor Hugo. Provavelmente por ter levado a língua francesa a limites e lugares onde poucos escritores chegaram.

Faço questão de comentar sobre seus leitores e reconhecimentos em outros ambientes além do já esperado conjunto “negro” justamente para dizer isso: que sua poesia, profundamente marcada por um vocabulário racializado (a Aimé Césaire é atribuída a invenção da palavra Negritude, por exemplo), ocupa também outros espaços e ganha um tal nível de transbordamento que fica impossível reduzi-lo a um gueto, uma seita, um espaço pré-estabelecido dentro da literatura para pessoas negras, tal como é costume no Brasil. Aimé Césaire, para quem a Negritude consistia na retirada das camadas superficiais até que se chegue no mais profundo, que é, segundo ele, o “negro essencial”, era, insisto, um gigante.

E isso se dá porque sua poesia nunca foi uma prestação de contas para o que ele chama de “mundo branco”. Ao contrário, ela assustou esse mesmo mundo branco em sua época, por ser uma conversa entre pessoas não-brancas que não estavam dando a mínima para aqueles leitores que, segundo Sartre (que escreveu o prefácio a uma antologia-manifesto do movimento da Negritude), “gozaram durante 3 mil anos do privilégio de ver sem serem vistos”. Por fundamentar um diálogo de um mundo que dá de ombros para o que esperam dos negros os brancos. “Quando eu digo Negritude”, a fala é de Césaire numa entrevista em 2006, “é justamente para incomodar o branco. Ele me lança o insulto: “negro!”, e nós recolhemos essa palavra. Pois bem, sou negro sim! E isso te chateia, não é mesmo?”

O Cahier é, nas palavras de Lilian Pestre de Almeida, um discurso-serpente, um longo poema de transformação e de autoconhecimento. Relato do reencontro do homem negro com sua “terra natal”, que pode ser a Martinica, a África, sua própria aceitação, ou, indo mais ao fundo, o negro essencial. Está repleto de passagens arrebatadoras, num jogo entre a memória e a iluminação. Entre o grito de revolta e o grito do despertar. Entre a potência do momento primordial de todo poema épico e o lirismo de quem avança para mais adiante clamando a todos os demais que venham junto.

E está de pé a negrada

a negrada arriada
inesperadamente de pé
de pé no porão
de pé nas cabines
de pé na ponte
de pé ao vento
de pé sob o sol
de pé no sangue
de pé
e
livre
de pé e não pobre louca na sua liberdade e seu despojamento marítimos girando na deriva perfeita
ei-la:
mais inesperadamente de pé
de pé nos cordames
de pé junto à barra
de pé junto à bússola
de pé diante do mapa
de pé sob as estrelas

de pé
e
livre

(…)

*

Proposição

Há pouco mais de dez anos que venho lendo, conhecendo e estudando a obra de Aimé Césaire e que perpasso, sempre admirado, as páginas do Cahier (que eu costumava pensar mais como Caderno de um retorno à terra natal). Ao longo desse tempo, vim colecionando textos, livros, poemas que lhe fazem referência, estudos, glossários (extremamente necessários para um poeta de vocabulário gigantesco e que explode com os limites de seu idioma), entrevistas, biografias.

Eu gostaria de compartilhar um pouco dessas leituras com mais pessoas por aqui. Ouvir impressões. Conhecer pontos de vista diferentes do meu e dos dos autores que tenho lido. Por isso, estou organizando um programa que chamo de “Leitura Aberta”. Uma leitura integral do poema, que se abriria, na medida do possível, a um debate na sequência. Não tenho data nem local. Estou aberto a propostas. Para falar comigo, basta clicar em contato, no cabeçalho deste blog ou clicar AQUI.

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