Arquivo da tag: anderson almeida

Um poema de Anderson Almeida

Guerra

Para Leo Gonçalves

Você para –
e se depara
com o guepardo.

Fogo nativo,
na noite
ativo.

Você para –
e o guepardo
repara.

Suas fibras
sem grades
se compassam.

Nas patas,
a pausa
se aperta.

Nos pés,
o passo
passa.

A espádua,
a espada
do guepardo.

A sua,
o olhar
crispado.

Ele dispara
e você, calado,
só encara.

(Seu corpo,
do medo,
isolado.)

Você, quieto,
ao seu embalo
se iguala.

Ele, solto,
a você imóvel
se equipara.

O respeito
mal resvala
a face felina

e o ataque,
cedo certo,
desanima,

e o anteparo
dessa ruga
lhe ampara.

A fera
se equipa
de cautela

e a estátua
em suas patas
se hospeda.

.

II

Outra arma
entre os dois
se aloja.

Fogo-falo,
contra a noite
feito fraco,

a distância,
a armadura
dessa arma.

O abuso
dessa ajuda
os ultraja

e o guepardo
se vira
contra a besta,

que de lá
já aponta
para a fera.

(Fulo,
você folia
por sua guerra.)

O guepardo,
ora irado,
se destaca –

predador
que voa
como pedra.

O estalo
do tiro
não o abala:

ele dispara
a si
contra a bala.

Anderson Almeida (1977), poeta belorizontino, foi premiado em vários concursos de poesia e não publicou nenhum de seus livros. Participou recentemente do livro Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos – ações poéticas do Poro. Considero-o um dos mais consistentes da minha geração e para mim é uma imensa honra ter um poema dele dedicado a mim e honra tão grande quanto esta é poder publicá-lo aqui no Salamalandro. Valeu Anderson!

Ações poéticas do Poro

Intervalo, respiro, pequenos deslocamentos. Em edição bilíngue, o livro do Poro chegou desviando discurso. Premiado pelo Programa Brasil Arte Contemporânea da Fundação Bienal de São Paulo e Ministério da Cultura, é um trabalho belíssimo e de extremo cuidado com mínimas minúcias, cores, palavras, pixels. Organizado pelo Marcelo Terça-Nada e a Brígida Campbell, tem edição bilíngue (inglês-português) e traz textos de: Daniela Labra (pesquisadora e curadora – Rio de Janeiro), André Mesquita (pesquisador e ativista – São Paulo), Newton Goto (artista, pesquisador e curador – Curitiba), André Brasil (pesquisador da área de comunicação – Belo Horizonte) , Wellington Cançado & Renata Marquez (arquitetos, curadores e pesquisadores – Belo Horizonte), Anderson Almeida (escritor – Belo Horizonte), Luiz Carlos Garrocho & Daniel Toledo (pesquisadores e criadores cênicos – Belo Horizonte), Ricardo Aleixo (poeta, curador e ativista cultural – Belo Horizonte).

Para saber mais, clique no link:
www.poro.redezero.org/livro/

Anderson Almeida e a vanguarda distraída

O poeta Anderson Almeida (na foto lendo o livro de Léopold Sédar Senghor) é um cara curioso. Muito vivo, exageradamente discreto. Quando nos conhecemos, ele não gostou dos meus poemas: ficamos grandes amigos. Lembro que em 1997, quando BH se preparava para uma celebração dos seus 100 anos, tínhamos o hábito de frequentar os bares da “Poesia Orbital”. Na ocasião tinha sempre algum poeta orbital falando versos em algum palco. Certa vez ele me disse: “cada vez que vejo um ator global falando versos de um poeta orbital, tenho mais certeza de que palcos não são o meu forte…” ou algo assim.

Nessa época a gente vivia intesamente este poema dele:

curtametragem

o homem pulou da ponte
e ao erguer a vista
e contemplar o horizonte
amou a vida e não viu por onde
retomar a subida

.

Desde então, a gente cometeu muita vida. Um dia ele me aparece com um calhamaço de uns 200 haicais completamente originais e inesperados. O silêncio dele nos últimos tempos me faz pensar neste haicai dele:

estou mudo
como borges era cego
e beethoven era surdo

Ele é um dos caras mais originais da minha geração. Nunca fez muita questão de mostrar o que escreve. Esconde dos holofotes, descansa no liso. Ele faz parte de uma vanguarda que chamo de “vanguarda distraída”. Linguagem urbana, vitalidade em cada vírgula. No meio da distração, ele cisma de vez em quando de enviar um poema para algum concurso. Ganha, claro. Lembro até que quando o conheci, tinha ganhado um prêmio de honra ao mérito num concurso de poesia latino-americana realizado na Alemanha.

Depois ele ficou entre os 5 melhores de uma revista chamdada Ipsis-Literis. Quando li os versos que ficaram em primeiro, gostei mas não amei. Apenas confirmei a insuficiência desses concursos. Os poemas que ficaram em primeiro lugar tinham todo um clima de aplicação das teorias aprendidas na academia, enquanto que nos poemas do Anderson (que mereciam de longe o primeiro lugar) parecia que a língua estava acabando de ser inventada, sem compromisso com a história da literatura, sem compromisso com ninguém, originais e consistentes. uma pena eu não estar com eles aqui (no meio de muitas mudanças, meus livros ficaram dispersos e não encontro mais nada).

Mas em todo caso, vou deixar dois outros, publicados no jornal estilingue #3 em 2004 enquanto ficamos na torcida para ele lançar logo um livro:

as ruas em alta velocidade se estraçalham em esquinas
as estradas não têm quinas

as ruas e as estradas tentam todos os meios de despitar-se
em curvas, em pontes, em bifurcações

as ruas de mãos dadas
uma rua sem saída é uma rua só

há poemas pobres e planos como ruas

o poema é uma rua fantasma
que atravessa uma cidade fantasma
onde passam navios fantasmas
que deixam garrafas com manuscritos

e que manuscritos
enchem de amantes submarinos
as cidades em ruína

.

durmo de olhos abertos
meu irmão e seus brinquedos de guerra
minha irmã e suas guerras de brinquedo
disputo com os escorpiões meus sapatos
pendurei o espelho e caíram todos os quadros
vasculho cabides e gavetas
mas nada de meu
infilitra na solidão uma calma cotidiana
chove
moro em um morro forte onde uma árvore grande foi derrubada por um raio
ter uma moto e acelerar sem temer a árvore atravessada
chuva que diz sim em clarões

.