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manifesto antropófago – 80 anos

hoje, dia 1º de maio, ano 454 do calendário do brasil antropóphago: comemora-se 80 anos do manifesto de oswald de andrade.  manifesto profético, este. 80 anos depois, ainda podemos constatar: só a antropofagia nos une. para celebrar, publico na íntegra o texto manifesto de 1928 (digo, de 374).

Manifesto antropófago

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.

Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.

Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Continue lendo manifesto antropófago – 80 anos

povo se despede de aimé césaire na martinica

segue abaixo, uma das poucas notícias da morte de césaire em língua portuguesa. na chamada, não encontrei o nome do jornalista que a escreveu. em todo caso, parece ser uma tradução de letra a letra de um texto que saiu, se não me engano na rfi (radio france internationale).

FORT-DE-FRANCE (AFP) — Uma multidão compareceu neste sábado ao velório do poeta Aimé Césaire na Martinica, no estádio de Dillon, em Fort-de-France, onde no domingo serão realizadas as homenagens nacionais.

O caixão percorreu a cidade na sexta-feira, sob aplausos de milhares de pessoas que acompanharam o cortejo fúnebre para dar o último adeus ao pai do movimento “negritude” e principal figura política da ilha durante mais de meio século. Césaire faleceu na quinta-feira, aos 94 anos.

O presidente francês Nicolas Sarkozy irá à Martinica para assistir à cerimônia de enterro do escritor, poeta, autor teatral, ensaísta e homem político de esquerda.

Sarkozy saudou Aimé Césaire como um “símbolo de esperança para os povos oprimidos”.

O velório popular continuará até domingo, quando o poeta será sepultado com honras de Estado, privilégio concedido até hoje na França apenas aos escritores Victor Hugo, Paul Valéry, em 1945, e Colette, em 1954.

meu comentário fica por conta do silêncio brasileiro em torno a este acontecimento, tendo em vista ter sido este um dos personagens decisivos do século xx, não apenas por sua atuação como poeta e ensaísta, mas também como político e como rebelde. o poeta, que foi saudado por andré breton e por jean-paul sartre, morreu como um dos homens mais ilustres e influentes do planeta, um personagem tão importante quanto um nelson mandela da vida.

a existência dele no mundo nos fazia lembrar que a poesia pode, sim, ser instrumento de transformação. e que um poeta vivo mantém viva com ele a memória de tempos imemoriais. tempos que antecedem não só a idéia de mercadoria, dinheiro e exploração do homem pelo homem. tempos que antecedem a própria idéia de poesia.

leia também o comentário de marcelo coelho (da folha de são paulo) e sua tradução do poema “soleil serpent“. [ aqui ]

aimé césaire, um negro essencial

fuçando no youtube, encontrei este vídeo curtinho que mostra um pouco do universo de césaire, sua martinica. segue abaixo a transcrição, a título de legenda.

quem é este homem franzino que foge da mídia mas que todos os grandes do mundo vêm saudá-lo na sua ilha da martinica?

ao um tempo poeta, escritor, homem político, aimé césaire é antes de tudo um pioneiro que teve a coragem de defender orgulhosamente sua cor negra e deixar também a sua marca no século xx.

ardente defensor dos valores de esquerda, césaire se define como um socialista conseqüente. o que significa para ele, manter-se permanentemente à escuta de seu povo.

hoje, com mais de 90 anos, aimé césaire continua a receber todo dia no seu escritório na antiga prefeitura de fort-de-france, as personalidades do mundo inteiro, mas também, e principalmente: os simples habitantes da martinica.

outro poema do aimé césaire

para dizer…

para revitalizar o rugido das fosfenas
o âmago oco dos cometas

para reavivar o verso solar dos sonhos
sua lactância
para ativar o fresco fluxo das seivas a memória dos silicatos

fúria dos povos sumidouro dos deuses seu salto
esperar a palavra seu ouro sua orla
até a ignífera
sua boca

pour dire…

pour revitaliser le rugissement des phosphènes/le coeur creux des comètes//pour raviver le verso solaire des rêves/leur laitance/pour activer le frais flux des sèves la mémoire des silicates// colère des peuples débouché des Dieux leur ressaut/patienter son or son orle/jusqu’à l’ignivome/sa bouche

este outro, aimé césaire publicou no livro “moi, laminaire…”, 1961

um poema de aimé césaire

entre outros massacres

com todas as forças o sol e a lua se entrechocam
as estrelas caem como testemunhas maduríssimas
e como um carregamento de ratos acinzentados

não tema nada apronta as tuas grossas águas
que tão bem carregam a berma dos espelhos

puseram barro nos meus olhos
e veja eu vejo terrivelmente eu vejo
de todas as montanhas de todas as ilhas
não resta mais nada a não ser alguns tocos ruins
da impenitente saliva do mar

entre autres massacres

de toutes leurs forces le soleil et la lune s’entrechoquent/les étoiles tombent comme des témoins trop mûrs/et comme une portée de souris grises//ne crains rien apprête tes grosses eaux/qui si bien emportent la berge des miroirs//ils ont mis de la boue sur mes yeux/et vois je vois terriblement je vois/de toutes les montagnes de toutes les îles/il ne reste plus rien que les quelques mauvais chicots/de l’impenitente salive de la mer

este poema foi publicado por aimé césaire no livro “soleil cou coupé”, 1948

um poema de sousândrade

Flirtations
(Manhattanville)

Ninguém ande à encruzilhada
Por noites de São João –
Vejam a mal-assombrada,
Meninas! “Oh, a visão!…”

– Cora, qual é tua sorte?
“Na Quinta Avenida, à corte,
Casarei.”
– Sempre never cada Fanny?
“Morrerei.”
– E tu, Augusta, rubores?
Vão ver, que sorte de amores…
“Eu sonhei.”

Pior do que encruzilhadas
De visões; portas e escadas
Destes céus de Manhattan
Com que aí stão-se aninhando
Alvoradas? matinando
Toda a noite até manhã?
“Fogo! fogo! é rato! é gato!”
– Matinada de Babel!
Meninas, mudem de quarto,
Há mais quem durma no hotel!

São as três; doirada tarde,
Vêm da escola e em risos ledos,
O olhar longínquo de que arde,
Atiram beijos co’os dedos.

Ora, estudando as lições:
“Diga, diga, as professoras
Deram tese – Os dois vulcões
Maiores -. Belas senhoras,
Há crescenças… sobre os Andes
Que são da terra as mais grandes…
Rindo Fanny, Cora alada
E ar Augusta de graduada –
“Andes são serras: vulcões,
Sir! os maiores do mundo!?”
– Oh! que estão no céu profundo
Chamas lançando em festões?
“Yes! Yes!”
– Que rugem? ‘strugem
Com lavas bravas?!
“Yes! Yes!”
– São, my girls, dois corações…
“Oh! oh! oh!”

um poema do livro: “Sousândrade: inéditos” (org.: Frederick G. Williams e Jomar Moraes). São Luís: Departamento de Cultura do Estado, 1970

como era gostoso o meu francês

Um filme precursor, de Nelson Pereira dos Santos, rodado em 1971. Talvez o primeiro a trazer para as telas uma visão renovada da “antropofagia” de Oswald de Andrade. Relata a história de um homem que, tendo chegado ao Brasil na frota do viajante Villegagnon, acaba ficando por aqui. O francês é capturado por um grupo de tupinambás que pretende comê-lo. Porém, durante a preparação da carne, acaba passando um longo tempo junto à tribo, o que o leva a adotar hábitos dos indígenas. O filme é falado em tupi e francês (obedecendo às origens de cada personagem), mas há alguma passagem em português lusitano.

O filme foi proibido em sua época pela ditadura militar e conseguiu a licença em seguida com o argumento de que nudez de índio não é pornografia. Mas a liberação, só com censura 18 anos.

Com uma visão irônico-crítica dos relatos dos europeus que vinham para as praias brasileiras, afastado dos tiques típicos da arte partidária, procurando uma visão o menos caricatural possível do indígena brasileiro, o filme evidencia, contudo o olhar do estrangeiro que chega por aqui. O que faz com que o diferente, o “primitivo” se torne elemento de intolerância, irritação e chacota por parte de quem se quer “civilizado”.

Uma vez inserido na cultura brasileira, o estrangeiro acaba por se dissolver nela. Não sem uma certa paixão que chega a ser erótica e romântica. “Só a antropofagia nos une”, repetiria a indiazinha com quem o francês se amasia. E logo, é feita a divisão das partes, do francês: “o braço é para o irmão do cacique, o outro para o guerreiro mais forte, o pescoço é da amante…” e assim por diante. O jovem (que não chega a possuir um nome, no filme) quer levá-la de volta para a Europa. Ela se recusa. “Só a antropofagia nos une”. O pescoço já está prometido.

Recentemente, surgiu na cena cinematográfica uma nova onda: a de filmes falados em línguas mortas ou esquecidas. O filme “Desmundo”, outro filme excelente (dirigido por alain fresnot e baseado no romance homônimo de Ana Miranda) tenta reproduzir, depois de profundos estudos lingüísticos, o português da época de Pero Vaz de Caminha (isso sem falar dos filmes recentes de Mel Gibson, os paranóicos “Apocalypto”, falado na língua Maia, e “Paixão”, em hebraico, aramaico e latim).

Certa vez ouvi do senegalês Hamidou Sall uma citação de Césaire que era mais ou menos assim: “Há duas maneiras de se perder no mundo: uma é se diluindo na universalidade, a outra se dissolvendo no seu próprio íntimo”. A antropofagia, um modo de pensar incompreensível para europeus supercivilizados, é um modo de não se deixar dissolver, mas assimilar o outro em si mesmo. A existência deste filme é um alívio. Acredito cada vez mais que a antropofagia não foi suficientemente aproveitada pelo brasileiro que se sente ansioso por uma certa originalidade impossível.

Em tempos de globalização, a tendência de sermos engolidos por culturas hegemônicas é muito forte. Por outro lado, o brasileiro, que sempre quis ansiosamente ser “o outro”, preferencialmente um sujeito civilizado e civilizante, pensar o nosso lado selvagem é de extrema urgência. Especialmente sabendo que temos hoje cerca de 170 línguas faladas além do português no território nacional e que há muito mais quilombos escondidos do que se supunha. Pensar a antropofagia hoje, significa descobrirmos como olhar para dentro. Uma antropofagia como autofagia ou como rememoração desavergonhada de nossos hábitos canibais.

O filme agora pode ser visto no youtube. A cópia digital não está muito boa, mas dá para curtir.

Máscara Negra – Léopold Sédar Senghor

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Máscara negra

A Pablo Picasso

Ela dorme e repousa sobre o candor da areia
Kumba Tam dorme. Uma palma verde vela a febre dos cabelos, a fronte curva cobre
As pálpebras fechadas, corte duplo e têmperas seladas.
Esse estreito crescente, este lábio mais negro e até pesado
– onde o sorriso da mulher cúmplice?
As patenas das bochechas, o desenho do queixo cantam o acordo mudo.
Rosto de máscara fechado ao efêmero, sem olhos sem matéria
Cabeça de bronze perfeita e sua pátina de tempo
Que não suja ruge nem rubor nem rugas, nem marcas de lágrimas nem de beijos
Oh rosto tal como Deus te criou antes da própria memória das eras
Rosto do amanhecer do mundo não te abra como um colo terno para emocionar a minha carne.
Eu te adoro, oh Beleza, com meu olho monocórdio!

Masque nègre
A Pablo Picasso

Elle dort et repose sur la candeur du sable./Koumba Tam dort. Une palme verte voile la fièvre des cheveux, cuivre le front courbe/ Les paupières closes, coupe double et sources scellés./Ce fin croissant, cette lèvre plus noire et lourde à peine/ – où le sourire de la femme complice?/Les patènes des joues, le dessin du menton chantent l’accord muet./Visage de masque fermé à l’éphémère, sans yeux sans matière/ Tête de bronze parfaite et as patine de temps/Que ne souillent fards ni rougeur ni rides, ni traces de larmes ni de baisers/O visage tel que Dieu t’a créé avant la mémoire même des ages/ Visage de l’aube du monde, ne t’ouvre pás comme um col tendre pour émouvoir ma chair./ Je t’adore, ô Beauté, de mon oeil monocorde!

*

Postei este poema, atendendo ao pedido do Mateus, leitor deste blogue, segue o poema “Máscara negra” de Léopold Sédar Senghor, em tradução minha.

Dedicado a Pablo Picasso este poema testemunha uma epifania do poeta diante do pensamento do pintor. Segundo o próprio Senghor, a obra de Picasso, sua paixão pelo primitivismo, o fez repensar sua condição de africano na época em que vivia em solo europeu, num período em que a ideia da Negritude apenas fervilhava nas cabeças dos jovens poetas que moravam em Paris.

Consta que Picasso alimentava uma certa paixão pela tradição pictórica da África e, ao entender que uma máscara nas culturas animistas não é uma mera escultura, mas uma arma, uma ferramenta, afirmou: “Se damos formas aos espíritos, nos tornamos independentes”. Com isso, também pôde compreender melhor o sentido de sua própria pintura.

risério n’o tempo

a utopia brasileira e os movimentos negros, livro de antônio risério (editora 34)por ocasião do lançamento do livro “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros”, o poeta e antropólogo baiano antônio risério concedeu, no último dia 05, uma entrevista a joão pombo barile, do jornal mineiro O Tempo. sério pesquisador da cultura brasileira, risério comenta alguns dos assuntos mais polêmicos na atualidade. chamo a atenção para o fato de que ele propõe uma visão muito mais lúcida e com visão ampla dos fatos do que a maioria do que anda sendo falado por aí sobre assuntos como: racismo, cotas para negros na universidade, a situação de negro no brasil e um tema muito pouco falado (pois por aqui ainda vigora nas cabeças o maniqueísmo negro x branco), mas que a meu ver é a base da questão social brasileira: a questão da mestiçagem. vale a pena dar uma olhada. deixo apenas uma palhinha e os links:

João Barile: No seu livro fica claro que, para o senhor, a mestiçagem é um processo biológico e cultural e não pode servir como um mecanismo de redução das distâncias sociais. Mas aí fico pensando naquela letra do Caetano Veloso e do Gilberto Gil, “Haiti” (“E são pretos/ e são quase pretos de tão pobres…”). Se a pobreza entre nós não tem cor, também não dá para dizer que os negros não sejam maioria…

Antônio Risério: O que eu digo é que mestiçagem não é sinônimo de igualdade, nem de harmonia social. Não exclui o preconceito, o conflito. E o Brasil é a melhor prova disso. É claro que boa parte dos negromestiços brasileiros vive em situação infra-humana, sem acesso aos serviços públicos mais elementares, ganhando pouco, morando e comendo mal, com baixa ou nenhuma escolaridade. Mas não só eles. Nem todos os pretos são pobres e nem todos os pobres são pretos. Eu não digo, em momento algum, que a pobreza no Brasil não tem cor. É o contrário. Ela tem muitas cores. Basta entrar numa favela paulista para constatar isso. Na Amazônia, os negro-mestiços não constituem a maioria dos pobres. Esta maioria é cabocla, de ascendência indígena. Há muitos brancos pobres no Rio Grande do Sul, no Paraná, em Santa Catarina. Por outro lado, cidades como São Paulo e Salvador já tiveram prefeitos pretos, a exemplo de Celso Pitta e Edvaldo Brito. E hoje existe uma classe média negra no Brasil, estimada em mais de 10 milhões de pessoas, segundo a Associação Nacional de Empresários Afro-Brasileiros. É para esses mulatos mais escuros que existem coisas como a revista “Raça” e todo um elenco de produtos cosméticos e vestuais. É certo que não é suficiente. Mas a promoção da inclusão social no Brasil não deve se pautar por linhas étnicas rígidas. Nossa pobreza não é somente negra. “Haiti” é uma composição que fala de Salvador, cidade marcadamente negro-mestiça. Mas não faria sentido algum se a sua referência fosse Belém ou Manaus.

para ler a entrevista na íntegra, clique aqui