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Consciências negras

Mulatos – uma história haitiana

Agostino Brunias

“Haiti onde a negritude pôs-se de pé pela
primeira vez e disse que acreditava na sua humanidade”

Aimé Césaire
Diário de um retorno ao país natal

O surgimento da Ilha de Saint Domingue, assim como da maioria das antilhas, coincide com a história do cultivo da cana-de-açúcar no novo mundo. A ocupação europeia se deu a partir de 1492, quando Cristóvao Colombo, recém chegado, deu-lhe o nome de Hispaniola. Seus primeiros habitantes, o povo Arauaque, foi completamente dizimado e expulso pelos espanhóis que a colonizaram e que mais tarde tiveram que dividir aquele território com os franceses. O cultivo da cana-de-açúcar começa no século XVII e inaugura naquele país uma sociedade nova, cruel, abusiva. Fazendeiros brancos franceses que administram enormes plantations com mão de obra negra. Enormes contingentes de africanos trazidos continuamente ao longo daqueles dois séculos. Ao que parece, sua maioria era proveniente do golfo do Benin, Angola, Congo e noroeste da África.

Em meados do século XVIII, aquela sociedade já havia se tornado um tanto mais complexa: dirigida por uma aristocracia branca enraizada mas que se considerava francesa, atendendo sempre aos comandos do rei da França que sempre enviava pessoas para fiscalizar os rendimentos. Não é preciso ser muito imaginativo para saber que tal aristocracia não era nada amena, nada gentil e que se sentia no direito de cometer as maiores atrocidades. Seja entre eles mesmos. Maiores ainda em relação aos seus objetos, os negros, que eram torturados, estuprados, dilacerados em praça pública para servir de exemplo e para manutenção do poder.

Além desses, com o encontro das raças, surgem também os novíssimos filhos de Saint Domingue: os mulatos. Estes não se reconheciam como brancos, mas eram filhos deles e por isso conviviam em situação especial. Não se viam como negros, embora não renegassem suas mães. Mas sentiam superiores a eles. Em idade apropriada, muitos eram enviados para a França onde estudavam em pé de igualdade com os aristocratas franceses do continente. No continente, a discriminação de cor era menor, não apenas porque estava na moda entre as cortesãs o uso de perucas crespas. Se engajavam no exército francês, ganhavam conhecimentos de fidalguia e, como tinham boas relações, se sentiam “superiores” a seus progenitores negros. De volta à ilha, produziam um modo de vida mais focado que o de seus pais brancos. Adquiriam fazendas. Produziam uma vida, na medida do possível, “honesta”, ganhavam reconhecimento e simpatia. Também possuíam escravos negros, mas não os tratavam tão mal. Depois da Revolução Francesa, ainda, alguns deles ganhariam seus representantes no congresso e defenderiam interesses haitianos. Mesmo assim: eram escravocratas e não desejavam de maneira alguma a mudança desse fato.

Sim: as classes sociais eram assim: brancos (aristocracia), mulatos (uma espécie de classe média ou burguesia) e negros (em sua maioria escravos, mas um ou outro possuindo liberdade e seu pedacinho de terra).

É nesse contexto socio-cultural que a ilha deu origem à primeira independência latino-americana, liderada por homens negros de quem jamais se esperava que tivessem forças suficientes para sobrepor o jugo em que estavam metidos. Especialmente porque antes, os brancos haviam tentado dar um golpe (que foi rapidamente sufocado pela coroa) e os mulatos tentaram também sem sucesso realizar a sua revolução.

Esses são os relatos de dois grandes historiadores antilhanos: Aimé Césaire (o poeta martinicano) e C. L. R. James (nascido em Trinidad) em seus livros Toussaint Louverture – La Révolution française et le problème colonial (Paris: Présence Africaine, 1981) e Os Jacobinos Negros: Toussaint Louverture e a revolução de São Domingos (São Paulo: Boitempo, 2000), respectivamente.

Segundo eles, a revolução que transformou o país de Saint Domingue em Haiti (ou Ayiti, conforme grafam os crioulofalantes de lá), esta que foi a primeira independência e a primeira abolição de uma escravidão do Novo Mundo (desistindo de contar com a independência dos Estados Unidos, um país completamente diferente no contexto das Américas), foi possível, em primeiro lugar, devido à grande coesão da classe que se sublevou. Césaire comenta que os negros comandados por Toussaint Louverture logo perceberam que nem brancos, nem mulatos e muito menos a tão “libertária” revolução francesa daria importância para eles. Que se quisessem sair da condição em que se encontravam, teriam que consegui-la com as próprias mãos. O elemento surpresa, somado ao imenso número de homens engajados em sua guerra, sua tenacidade, a capacidade estratégica e a grande agilidade de pensamento de seus líderes seriam alguns dos ingredientes para o sucesso da empreitada que, obviamente, não se deu sem percalços e que, além disto, ao se cumprir não trouxe a esperada paz para aquela nação crioula.

Voltando ao tema dos mulatos: o observador ficará estarrecido ao ver que o argumento da cor fará dos mulatos seres petulantes, capazes de se achar superiores a seus antepassados negros e a tratar o branco com toda a reverência, buscando constantemente “fazer parte” daquela sociedade que havia implantado seus projetos (a França) e da que permanecia (os brancos haitianos) em seu país. A depender dos mulatos de Saint Domingue, aquela seria eternamente uma sociedade de costumes brancos com mão de obra negra.

Quando penso nessa história, me é inevitável comparar com o Brasil. A presença dos fatos históricos antilhanos na nossa memória, bem como a de seus mitos, nos foi completamente apagada. No século XIX temia-se uma haitianização do Brasil, uma vez que as revoltas de negros pipocavam pelo país. Imagino que naquele tempo, a repressão ao negro se acirrou em vários cantos. Nosso país, cuja estrutura social é muito mais complexa em muitos sentidos, permanece um país de mulatos que se querem brancos. Precisa citar exemplos? Tenho muitos. Alguns deles têm sido meu lugar de convívio no local de trabalho nos últimos dias. Mas antes que prolongue demais o papo de hoje, deixo aqui apenas esta pérola do Gilberto Freyre, nosso grande historiador, mas também um adepto da estranha brancocracia brasileira:

Todo Brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo ─ há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil ─ a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se declinam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo.

(Gilberto Freyre. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933)

Em outras palavras: segundo Freyre, a participação negra e indígena na formação do Brasil se deu apenas através de uma constante subserviência. Amas de leite, mulatinhas que treparam com seus “superiores” brancos desinteressados de sua possível paternidade, pouco se importando com seus filhos vindouros. Pessoas “de cor” com quem tiveram apenas prazeres e nenhuma responsabilidade. Esse “nós”, a quem ele se refere, sendo uma elite com devir branco, ainda que sejam um nós com uma pinta “mongólica ou de jenipapo”. Nenhuma importância é proclamada no aspecto intelectual ou na formação da poiésis brasileira. O que é, no mínimo, um modo de manter através do discurso, e de maneira populista, um status de servidão para quem possa ser identificado na cor negra ou mulata. Não estou negando com isto a importância do Gilberto Freyre.

Sim, por mais que se queira elogiar as belezas da mestiçagem e seus arredores, não dá para negar que o que queremos é uma civilização de brancos que atravessam a rua com medo de uma turma de inofensivos moleques que caminham juntos pela calçada. Um país em que as balas de borracha cegam brancos e daí surge uma grande comoção, mas que as balas de verdade acertam quem é da periferia e essa periferia é negra e ninguém se importa quando esses morrem. Um país que aceita a ideia de que “o cara de bicicleta atropelou o carrão importado do filho do ricaço”. Um país que quer que se dê cotas para negros (não sou contra) para que estes possam finalmente se inserir, mesmo sem os recursos para se manter ali, nos meandros de uma cultura branca, de uma elite que pretende ser branca, independentemente da cor.

Ainda vale dizer, embora eu saiba o quanto isso possa gerar conversas prolongadas, que aqui não se trata de biologia, de questões sanguíneas, mas sim de aspectos culturais e socio-culturais. De convívio de igual para igual. De oportunidades iguais nos grandes e pequenos cargos. Que ninguém negue os valores das ações afirmativas conquistadas e a conquistar, mas que todos saibam que queremos bem mais que isso. Como queriam também os caras da revolução haitiana.

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Livros consultados:
Césaire, Aimé. Diário de um retorno ao país natal (Cahier d’un retour au pays natal), tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.
Césaire, Aimé. Toussaint Louverture: La Révolution française et le problème colonial. Paris: Présence Africaine, 1981.
Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933.
James, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.