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Poesia brasileira na Babelsprech

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Dividido em 3 partes, o trabalho de fôlego feito por Ricardo Domeneck para a revista Babelsprech já pode ser lido. Lá se faz um panorama variado do que se produz hoje em dia no Brasil, assumindo desde o princípio a dificuldade e a insuficiência da empreitada e cumprindo com a apresentação de uma grande diversidade de linguagens presentes naquilo que podemos chamar de “poesia”. É um trabalho ao mesmo tempo monumental, arriscado, curioso e, por que não dizer, poético. E digo isso, não somente porque tive a honra de figurar entre os citados.

É sempre complexa a tarefa de dar um panorama da poesia contemporânea, de onde quer que seja, sem cair no jogo da canonização antecipada, no jogo da falsa ordenação, no mero juízo de valor, dentre outras coisas. A tentação de fazer o recorte e jogar formol em cima é sempre imensa. Nada mais difícil que falar do que está vivo, pulando e pululando ao nosso redor. Além disso, a grande tradição crítica do Brasil é a de uma busca infundada de uma certa civilidade nacional que, a bem da verdade, não existe e que, principalmente, não é necessária. Tudo isso é possível. Vá lá ver.

Clique nos links abaixo, afie seu inglês, tenha ao lado um bom dicionário e divirta-se:

parte 1: www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-2-brasilien-13/

parte 2: www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-2-brasilien-23/

parte 3: www.babelsprech.org/tuerme-der-nachbarn-brasilien-33/

Poesia em tempos de marketing

O poeta Charles Baudelaire, viciado em fluoxetina.
O poeta Charles Baudelaire, viciado em fluoxetina nos dias de hoje.

Poesia azucrina. Um poeta deve acreditar no que faz até as últimas consequências. Poetas querem ser reconhecidos antes mesmo de escrever os poemas. Os poemas não serão lidos. Não serão comentados. Não ganharão likes. Não serão favoritados. Não ganharão o Jabuti. Não concorrerão ao prêmio Portugal Telecom. Os poetas não serão convidados a participar da Frankfurt Buchmesse. Na Flip, os poetas poderão comprar ingressos a cinquenta reais para assistir às mesas de debate. Os assuntos discutidos lá serão todos irrelevantes ou quase. O tema que o poeta defende até os ossos não passará nem perto dos assuntos criados pelos organizadores de seu festival literário preferido. Tudo porque não foi o poeta-que-defende-suas-ideias-até-as-vísceras que organizou e, ainda que fosse, o projeto passaria por um grupo tão grande de burocratas e marqueteiros que, ao chegar à forma final, estaria tudo dilapidado.

O poeta só apita sobre seu próprio texto. Quando seu livro for para uma editora, corre o risco de ser tesourado pelo assistente editorial. Se não souber defender suas ideias até o miolo, o texto publicado será uma cópia da cópia da cópia da cópia de terceiro grau do mundo das ideias do seu autor. Ao ser publicado, o poeta também, salvo em casos honrosos (e em muitos, horrorosos), não palpitará no design gráfico. Poderá apenas apreciar ou depreciar. Alguns editores até podem ouvir seus terríveis protestos, revoltado que está com a capa nada a ver. Mas o voto ou o veto na hora de fechar o livro é do editor. Uma escolha que, aliás, estará limitada às limitações técnicas e estéticas do diagramador e seus acordos com a editora.

O melhor vendedor de um livro de poemas é o próprio autor. Isso não quer dizer que, ao fazer o marketing pessoal, ele vá ganhar uma legião de fãs. James Joyce foi um fracasso. Quando estava para ganhar reconhecimento, morreu. Kafka não publicou seus próprios livros e, no leito de morte, pediu para queimá-los. Dava tempo. Fernando Pessoa só viu um de seus livros impresso. Mensagem é um grande livro, mas não o seu melhor. Nem o mais popular. “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”, sua frase mais célebre, é citada todos os dias fora de contexto. Deixou de ser verso pra virar chavão de autoajuda. A alma teve que deixar o Pessoa antes que os autônimos e heterônimos dele passassem a ser os mais lidos, citados, adorados e psicografados da língua portuguesa.

Bons escritores são odiados pelos críticos e o público não os entende. Ser amigo de poetas não faz um poeta poeta. Imitar as fórmulas dos outros, citar autores conhecidos, perambular entre escritores, ser coisa pública na república das letras não garante qualidade. Qualidade não é poesia, poesia não é qualidade. Reconhecimento não possibilita bons poemas, por mais que a alma não seja pequena. Poetas precisam é de dinheiro. Reconhecimento vem com o tempo. Mas o tempo não gosta de poemas ruins. Nem quem não defende o poema até a espinha dorsal. Se for um soneteiro sonolento, se for um rimador de meia tigela, se seu plano é agradar o leitor, ele não sairá nunca da mediocridade. Talvez seja melhor ser medíocre. O público gosta de mediocridades. Twilight sempre existiu e sempre fez sucesso em todos os tempos.

Um bom poema azucrina. Quem quiser gostar que goste. Quem não gostar, que se desgaste. Pound fazia uma analogia com a ciência: o pesquisador neófito aprende o conhecimento que chegou até ele antes de se arrogar um descobridor. Quando o novo chega, apenas um pequeno grupo é capaz de compreender. O restante da turba sabe apenas execrar. Freud foi execrado. Galileu foi pra forca. Acharam que Einstein era um baleleiro. Só depois é que suas ideias se tornaram unanimidades. Poetas inventam o mundo – o seu próprio mundo. Caos e cosmos se agregam e desagregam num poema. É destruindo que se constrói. Poetas precisam de bons psicólogos, mas estes precisam ser mais inteligentes que aqueles, o que pode não ser muito fácil de achar. O que é original incomoda, ninguém entende. O psicólogo pode querer destruir a originalidade do poeta. Poetas mentem muito. Baudelaire hoje estaria viciado em Fluoxetina.

Se o poeta quer, tem que insistir. Defender com unhas e dentes, jogar pedra se for preciso. Pixar se for preciso. Encher o saco. O esforço pelo poema não vale a pena. Não vale um centavo. Não vale uma menção no jornal. Nem nos classificados. Não vale uma tuitada. Não dá prestígio. Talvez uma meia dúzia de bombons e nada mais. Tentar lucrar com isso te matará de fome. Poemas assassinam, agridem, desumanizam o autor. O poema é ingrato. Do poema só sai poesia. Só isso. Nada mais. Divirta-se com poesia. Ou desista.

Palavras de Ronald Augusto

 

Antimanual de instruções para flutuar
Ronald Augusto

 

Prólogo travestido de poema; parapoema; operação duchampiana onde o discurso poético se interessa por sua própria desaparição e toca, portanto, a linha de fronteira da antipoesia; virulento tolicionário aos interessados em conquistar uma vida segura; enfim, o texto que situa o leitor na antessala do conjunto de poemas Use o assento para flutuar de Leo Gonçalves, parece exigir desse leitor que ele “pare à porta e cisme”. Sem recusar a noção de que um poema começa por onde termina, Leo Gonçalves – sabendo que diante da aparente impenetrabilidade do poema o fruidor anseia para que se abram suas portas de modo que ele seja introduzido nesse universo desconhecido – concebe a leitura como suspeição irônica diante dessas portas que estão sempre maliciosamente abertas.

O texto de abertura justapõe uma série de sentenças e enunciados que se constituem numa espécie de manual de instruções de corte paródico cuja observância facultará uma vida de prudência ao cidadão resignado ou ao “homem sem qualidades” do nosso tempo. Cada conselho-advertência desse manual inicia monotonamente com a anáfora “para sua segurança” (em negrito). Os clichês e os lugares-comuns que se seguem reforçam uma crítica mais ao autoengano e à autointerdição do que ao controle externo imposto pela sociedade ao sujeito. Exemplos de tal ambiguidade: “para sua segurança nunca dê uma passo em falso”; “para sua segurança tudo que é difícil cansa”; “para sua segurança mande matar o autor”. “para sua segurança mulheres e crianças primeiro”.

Em Use o assento para flutuar Leo Gonçalves se revela um poeta cujo alento versificatório traz a marca whitmaniana-poundiana dessa discursividade extravagante, desse lance textual que desborda das suas margens toleráveis, fazendo do corpo sonoro uma algaravia de sereias ventríloquas. Ao mesmo tempo, os transes rítmicos vêm de aruanda (do ori), já a imagética deita raízes no alto modernismo e em sua antilira logopaica. No poema mais longo “WTC Babel S. A.” esse convulsivo sincretismo poético se apresenta em toda sua radicalidade infernal. Uma medida de pop; fotogramas de um epos babélico; pornografemas e drogadição estética; sicários políticos postos a nu.

Por fim, um detalhe, uma pequena zona de escape para a prosa se dá a ver em Use o assento para flutuar. Leo Gonçalves experimenta as formas breves na narrativa “A decisão”, esboço de fábula, objeto verbal do absurdo. Kafka o observa do fundo da città dolente. Leo, leitor de Dante, mergulha no reino ínfero das linguagens e constrói seu edifício para o leitor ninguém-ulisseida e, a partir do jogo entre o fortuito e o forçoso, leva a efeito o movimento triádico e reiterativo. Pois, de acordo com os preceitos da cifra 3, se alguma coisa acontece apenas uma vez estamos frente ao acaso; se acontece pela segunda vez, pode ser que indique uma coincidência feliz ou não. Por outro lado, se o evento ocorre uma terceira vez trata-se já de uma confirmação, um signo. Use o assento para flutuar confirma Leo Gonçalves como um poeta atento ao risco e à premeditação, à deriva semântica e à composição intransigente.

Para a sua segurança, prezado leitor, antes de abrir o livro, é essencial deliberar se você vai limpar pés na entrada ou na saída.

(Texto publicado originalmente no www.poesia-pau.blogspot.com.br)

Palavras de Tanussi Cardoso

O lançamento no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio de Janeiro, foi uma carona excelente que o meu amigo José Geraldo Neres me deu. A sugestão e a viabilização se deu graças ao apoio amigo da poeta Rosane Carneiro, que infelizmente não pôde ir. Eliane Pauvolid mediou uma mesa de debates na qual, além de nós, os autores, participavam também os poetas e críticos Luiz Horácio Rodrigues e Tanussi Cardoso (este que você vê na foto aí abaixo). Deste último, ganhamos um texto crítico. “Não precisei dar tapinhas nas costas”, ele falou. Generoso, Tanussi. Reproduzo-o na íntegra. Obrigado!

PALAVRAS DE ACORDAR O CORPO
por Tanussi Cardoso

 

I) Para início de conversa…

Quando o José Geraldo Neres me convidou para participar da mesa, me disse que o tema a ser abordado era o de “influências e provocações durante a escrituração” dos dois livros, ”Olhos de Barro”, de sua autoria, e “Use o Assento para Flutuar”, do Leo Gonçalves. Não sabia bem o que isso queria dizer, mas, me lembrei de que o tema tinha o título de “Palavras de Acordar o Corpo” e aprendi, com o tempo e com a vida, que o corpo tem suas próprias razões; que o corpo fala. Eduardo Galeano já dizia que “o corpo faz festa”. Logo, quando o acordamos, através das palavras, ele, o corpo, tende a se esticar, a se espreguiçar, a se mover, a se acender, a se falar, a se comunicar, a se dizer, a se desdizer, enquanto corpo/voz e, pode mesmo, quem sabe, acordar como uma espécie de espírito/alma, Xamã, Oxóssi, Xangô, Cristo, Buda… E se ele vira alma, ele pode se transformar em ar, ficar leve, tanto como pode ser leve uma pedra, uma pluma, um poema, uma montanha, uma flor, um avião, um amor, um corpo morto. Aí, só tem um jeito: retirar os olhos de barro das palavras e colocá-las num assento para que elas possam aprender a flutuar.

II) Introdução

Outra palavra usada para nortear essa noite foi “hibridismo”, e é bem interessante que essa palavra tenha sido marcada, porque, em minha opinião, é uma das características entre as obras, sendo um dos elos entre ambas. O que temos de nos perguntar é se podemos chamar de híbrido a um texto, a um objeto ou a uma ideia. São muitas as respostas, mas, me parece, ser a qualidade de “impuro”, isto é, “aquilo que está misturado, o que não é original”, para onde o termo mais se direciona.

Contemporaneamente, há uma grande carga pejorativa sobre essa qualidade híbrida. Porém, uma das maiores pesquisadoras desse tema, Lucia Santaella, afirma: “Se a mistura é o espírito, como dizia Paul Valéry, e a cultura é a morada do espírito, então cultura é mistura”.

E se o termo é por demais abrangente, o objeto aqui em pauta – a poesia – com seu caráter excepcionalmente metafórico de retratar a alma e o espírito, com certeza, já nasceu híbrido, pois a poesia é a junção do olhar do poeta com a realidade a sua volta. Essa con-junção, essa “mistura”, só pode ser algo que possui valor híbrido. Logo, a poesia, por ser resultado de misturas, não só das várias linguagens possíveis ao poeta, mas do resultado do cruzamento de “corpo e alma”, já nasce “híbrida”, já que toda poesia é um retrato contextual da própria vida, por si só, “impura”.

Assim, se trouxermos a expressão, “hibridismo”, para a literatura, ela poderia designar uma poesia ou um texto, mesclado por justaposições de gêneros, linguagens, culturas, elementos da natureza, religiosos etc. Uma literatura que se alimenta de tudo e de qualquer coisa, recriando e misturando vários elementos dentro de uma obra, numa espécie de liquidificador cultural.

Dito isso, aceitando-se o termo como um fenômeno de nossa época, observamos que, nas produções poéticas mais recentes, é alto o índice de interpenetrações genéricas.
Na verdade, não só essa qualidade une esses dois livros que comemoramos hoje; uma característica maior os liga: o seu caráter “nonsense”, somado a certo experimentalismo, além das inúmeras referências literárias e do campo visual e plástico. Até mesmo o limite entre o humano e o não humano (homens, santos, divindades etc) vem, muitas vezes, embaralhado, entre a razão e a não razão, formando um painel que causa certo estranhamento no leitor.

III) Olhos de barro

O livro de Neres, “Olhos de Barro”, toca um pouco mais a estética surrealista; no entanto, não se pode chamá-lo ou situá-lo como um livro surrealista, em sua totalidade, apesar dos inúmeros exemplos de metáforas e analogias belas e imprevisíveis que ele contém. Nele, o “barro” vem carregado de uma conotação mítica: ele é a origem e o fim. Dele se nasce e dele, ou nele, se morre. É, ao mesmo tempo, a construção e o escombro. A pedra que levanta a casa e a pedra que constrói o tampo da laje definitiva. O barro, enfim, é o tempo. Simboliza não só os olhos, mas todo um corpo, toda uma casa fechada em si mesma. É vida e morte, unidas pelo tempo que a tudo vê e a tudo olha, ainda que por olhos nublados por esse mesmo barro.

Mergulho na sombra úmida. O rosto da vida que busca por onde começar. Sua distância ― uma tempestade que nos visita ―, seu olhar não se apresenta em forma d’água. Mergulho o rosto. A vida abre os dentes.

Os contos/poemas de “Olhos de Barro”, prosa poética da melhor qualidade, vêm cercados de lirismo, distante do pejorativo que essa palavra – lirismo – não sei bem por qual motivo, se vê cerceada, nesses tempos hipócritas do politicamente correto, por certa crítica que pensa ter o direito de dizer o que é certo ou errado em literatura. O lirismo de Neres não é derramado nem esponjoso, ao contrário, seu texto é seco, conciso, sem gorduras e possui o que simboliza melhor o sentido lírico: beleza e criatividade imagéticas. Mas não é uma escrita feita para agradar a leitores preguiçosos. É um texto, muitas vezes, cifrado, cercado de metáforas cruas e inteligentes, impregnado de imagens e signos pouco comuns, cujo sentido pode até mesmo ser o “não-sentido”, ou melhor, o sentido-do-não-sentido; a coerência da incoerência. O desaviso, o espanto, o inesperado. Um ritual de barulhos e onopatopeias, tragando, dentro do poema, a palavra, e, dentro da palavra, o poema, formando, me permitam a imagem, um prosoema.

Os retratos tomam as cores de nossa memória. Reconhecem as fe¬ridas. Nos negam a origem. O silêncio é a porta da qual não temos a chave. A parede por cair. A olhar o tempo. Não encontro o seu rosto entre suas raízes. Sombras saltam comigo.

O que Neres nos propõe é a palavra como atrito, fricção, consequência da tensão de forças externas e internas, não necessariamente antagônicas, mas, possível e provavelmente, complementares. É o próprio poeta quem pergunta: “Onde são forjadas as sombras?”

Waly Salomão disse, certa vez, que “a memória é uma ilha de edição”. O que cabe perfeitamente no texto de Neres. Ele provoca uma espécie de corte agudo em suas memórias, veste-as de imagens corporais, unta-as com os quatro elementos e as devolve ao leitor em forma poética, hibridamente, pois une a alteridade de outras técnicas, para incorporar em sua memória atávica, do medo da morte e da vida. É uma memória da pele, ancestral e futura. Uma memória que vem dos olhos de barro e resiste na totalidade de todos os sentidos: ”Um pássaro canta nos olhos de um girassol.”

Como ele mesmo diz: “Trago nos ossos raízes de tambores e nomes”.


IV) Use o assento para flutuar

Leo Gonçalves preenche as páginas do seu livro com vários segmentos de linguagens, informações, cortes, silêncios, fotos, técnicas discursivas e compactas, visuais e teatrais, poéticas e escatológicas, fazendo do caos algo orgânico e vital. Parece um pouco com a literatura dos anos 60 / 70, e, também, com aquela dos anos 2050, por sua imprevisibilidade e (in)coerência. Um filme de um Godard futurístico; Frankestein e Xuxa; Hitchcock e Woody Allen; bangue-bangue e desenho animado. Um livro repleto de humor e rumor, sério e irônico, cheio de citações e transcriações, apropriações da linguagem publicitária, sintético e verborrágico, concreto e surreal, uma ilha cercada de criatividade e poesia por todos os lados, envolvida numa atmosfera de suspense, tensão e filme-noir, e, ao mesmo tempo, nos oferecendo o lirismo agudo de um Charles Chaplin. É extremamente musical: rap, hip-hop, rock. Tango e valsa. Ele embaralha os textos convencionais e, imprevisivelmente, ilumina o silêncio como se fosse John Cage:

retesar a corda vocal
sob um eixo de 440 hertz

sistematicamente
desafi(n)ar

afiar a fio de faca
o v da seta-verbo

untar a flecha
em ervas da mata

erva que cura
erva que mata

depois de de-
cantar: atirar ao ar

ferir os ouvidos
tim tim por tim tímpano

*

desinventar a língua
em cada fala

Os poemas de “Use o Assento para Flutuar”, do Leo Gonçalves, funcionam como fotogramas da desintegração urbano/contemporânea. Uma espécie de luta contra o cotidiano tecnológico das sociedades industriais. Leo incorpora todos os pressupostos de uma poética pós-moderna: cruzamento de textos e referências da cultura de massa.

Nessa mistura, ele dialoga com a memória, tentando reconstruir os escombros e percorrer os caminhos míticos das suas raízes e de sua ancestralidade mística, para, de alguma forma, através da memória, chegar à reconstrução de uma história que ele, poeta e homem, acredita possível; algo assim como o fim das utopias.

uma cana pequena é uma caneta
a camisa pequena é camiseta
uma perna pequena uma perneta
uma bolsa pequena é uma boceta

um carro pequeno é um carreto
um disco pequeno é um discreto
um alfa pequeno é um alfabeto
um bolo pequeno é um boleto

se uma capa é pequena ela é capeta
uma réplica pequena é repleta
e se o punho é pequeno é punheta

uma mula pequena é um amuleto
quando o remo é pequeno é um arremedo
e se o sono é pequeno é um soneto

Leo parece propor a zorra total, contida na margem da palavra oral e escrita. Uma metralhadora cuspindo palavras por todos os lados – um livro nervoso como a modernidade urbana: despedaçado e uno, por essa fragmentação, pois, consiste, paradoxalmente, nessa estranheza, nesse espanto, a unicidade que transforma a voz de todos que se encontram no livro, na voz única do poeta Leo.

O poeta só quer flutuar seu assento com dois “s”, no acento, com “c”, fluido da inteligência crítica e criativa da boa palavra poética.

Trago em meu corpo a memória de todas as chibatadas
Que os meus antepassados deram
As chibatas abastadas que abastardaram seus filhos
Os meus ancestrais
Tudo numa única gota de sangue
Trago em meu corpo todas as marcas
Daquilo que chamam de amor
Nenhuma gota passará impune
Nenhuma gota imune
Em meio a todas as gotas
Uma única me reúne

Lendo a biografia do Leo, vi que ele desenvolveu, em 2011, um programa chamado “Palavra Inquieta”. A maior bandeira, pois essa é a síntese de sua poesia, uma “palavra inquieta”.

Tanussi cardoso, poeta
Rio, 25 de setembro de 2012
Centro Cultural da Justiça Federal/RJ

Poesia liberdade

O poeta mexicano Heriberto Yépez defendia, por volta do ano 2000, que fosse abolida a noção de literatura (já caduca) para colocar em seu lugar o “Decir” (Dizer). Gosto muito da crise que essa proposição provoca. “Por uma poética antes do paleolítico e depois da propaganda”, manifesto que aparece no livro de poemas que tem exatamente esse título, é um dos poucos escritos realmente revolucionários que li entre os poetas da minha geração. Só não concordo com o termo encontrado. Acho “Dizer” amplo demais, pode significar coisa demais, pouco específico. Aprendi com as yalorixás que é preciso dizer as palavras certas, caso se queira obter certo resultado.

Quanto a mim, prefiro um outro termo igualmente caduco e relaxado (por remeter a uma falsa idéia de beletrismo e bondade), porém mais específico: poesia. Poesia: elemento pulsante e vital de toda grande obra de arte, seja ela em versos, tinta, bytes, pedra, cores ou sons. Heriberto mesmo não descarta o termo. E fodam-se as especificidades disciplinares.

Mas aí, dizendo isso, me vem à cabeça o que dizia Artaud em 1944. “Revolta Contra a Poesia” é um texto cruel. “Nós nunca escrevemos sem a encarnação da alma, mas ela já estava pronta, e por nós mesmos, quando entramos na poesia. O poeta que escreve dirige-se ao Verbo e o Verbo às suas leis. Há, no inconsciente do poeta, a crença automática em suas leis. Ele se crê livre, mas não o é.” Artaud se dizia “contra a poesia dos poetas”. Ele via “não sei que operação de rapina, que autodevoração de rapina onde o poeta, se limitando ao objeto, se vê devorado por esse objeto”. Uma abjeta devoração de si mesmo. Artaud estava louco? Se estava, alguém me prenda por favor.

Evelyne Grossman, especialista em Artaud e sua biógrafa, mostra* que o missivista de Rodez queria era “não a poesia-objeto (de gozo, de consumo, de leitura… à distância), não a poesia que ele qualificava de “literária”, mas a poesia-força, encantamento, ritmo, “a poesia no espaço” (o que ele definia como teatro), o movimento das sílabas proferidas, expectoradas – os corpos animados por palavras”.

Muitas vezes, publicar um livro de poemas é mais uma questão de estômago. Aceitar ou não aceitar essa abjeta devoração de si mesmo. Há quem suporte. Poemas não são como ensaios acadêmicos: não precisam ser publicados para acontecer. Poetas são muito afoitos. Querem ver logo seus livros publicados, antes mesmo dos poemas existirem. Querem ser vistos, tidos e reconhecidos como poetas. Há inclusive os que estudam semióticas, cânones, linguagens. Mas não se preparam para preencher seus corpos e seus versos com os ritmos e sons gerados no big bang (no fundo todo poema é um big bang). E toda a ousadia que conseguem derramar em seus textos não passa de literatura. Milhares de livros de poesia publicados ao ano. Árvores cortadas em vão. Depósitos e mais depósitos amontoando papel inútil pintado com tinta. Lamentáveis gritos de autoestimas machucáveis. Anotações para diário inúteis para quem não nasceu dentro do corpo do autor.

Prefiro poesia. Não sei se escolho a palavra certa. Mas que importa o certo? Um bom romance muitas vezes é um bom poema. Vice-versa não. Ainda Artaud: “Quando recito um poema, não é para ser aplaudido mas para sentir corpos de homens e mulheres. Corpos, insisto. Vibrar e emanar em uníssono com o meu, emanar como se emana, da obtusa contemplação, do buda sentado, coxas instaladas e sexo gratuito, à alma, quer dizer, à materialização corporal e real de um ser integral de poesia”**.

* no prefácio à edição francesa de Pour en finir avec le jugement de dieu.
** citação de uma carta a Henri Parisot, datada de 6 de outurbro de 1945 e incluída no mesmo prefácio de Evelyne Grossman.

Para acabar com o juízo dos críticos

Sempre tive um pé atrás com as críticas que topam manifestar juízos sobre o que presta e o que não presta. Tenho para mim que toda teoria que parte de um único ponto de vista acaba por se tornar unívoca e, por isso mesmo, equívoca. Aprendi muito cedo que o projeto poético alheio deve ser respeitado, mesmo que eu não goste dos seus princípios ou os seus fins. Cada pingo no seu i, alguns iis com seus acentos. Repito o lugar comum de que “não gosto de poetas, nem de poesia, gosto de poemas”. Mas não serei eu a tomar partido ante o que supostamente presta ou não presta. Uma base teórica costuma ter a pretensão de basear-se em conceitos. Todo bom conceito precisa funcionar como uma ferramenta de pensar. Mas se um conceito segue sendo usado para engendrar juízos de valor, ele logo se tornará um pré-conceito. Na verdade, todo juízo de valor, feio ou bonito, bom ou ruim é sempre um preconceito, um pré-juizo que nada tem a ver com a arte em si.

A chegada da obra de Ezra Pound na cultura brasileira, nos anos 50 e 60 através dos concretistas e de Mário Faustino foi providencial. Nos dias de hoje, o discurso insistentemente neopoundiano está obsoleto e mal utilizado. E não é culpa das idéias dele. É que elas cansaram de servir a tudo. Vivemos uma época de tantas incertezas que ficamos sem perceber que neste assunto nada mais foi investigado, proposto, acrescentado. Aprendemos muito pouco sobre Pound depois dos concretos. Falar dele em língua portuguesa é lê-lo fora de seu contexto. Seria necessário pensar em toda a poesia de língua inglesa desde sua época até os dias de hoje, com suas várias gerações de artistas que pegaram a lição do velho Pound e a aproveitaram à sua maneira. Dos beats ao slam, muita coisa passou desapercebida no lado debaixo do equador. A language poetry e o concretism são apenas manifestações tímidas e localizadas em meio ao turbilhão revolucionário da língua de Blake e não são as mais radicais, e já temos Jerome Rothenberg que colocou recentemente os poetas xamãs esquimós do Canadá ao lado de Augusto de Campos no setor destinado à poesia visual em sua antologia Poems for the millenium.

Noto que, com o tempo, os críticos se apegam aos juízos e se esquecem que Pound queria uma poesia sem literatura, que ele incitava os artistas da língua a escrever no idioma vernacular falado (não será exatamente o que Mallarmé também sonha quando diz em seu poema, já com a carne triste depois de haver lido todos os livros e pensado seriamente em fugir: “entends le chant des mâtelots [ouve a canção dos marinheiros]”?) e que o seu paideuma, (ou mãedeuma) era proposto apenas como um dentre os muitos possíveis ou não passava de filhodeuma.

O discurso dos ditos “de vanguarda” está gagá. Até mesmo a pretensa “tradição da ruptura” de Octavio Paz, (aquela teoria segundo a qual a tradição da poesia moderna consiste em romper com o passado, ou seja, a tradição de romper com a tradição) já perdeu o sentido. Afinal, romper com o que? Com que tradição podemos romper se já não nos apegamos a nenhuma. Se Bauman está certo em dizer que vivemos em “tempos líquidos”, vamos quebrar o quê?

Não é de hoje que leio poetas-críticos respeitáveis que não conseguem esquecer as lições dos concretos. Em plena era pós-2000, ainda alardeiam os mesmos adágios que Haroldo e Augusto de Campos andaram repetindo com maestria ao longo dos últimos quase 60 anos (!) mas com uma nota decadente, já que estão ocupados mais que tudo em fazer com que a literatura (a poesia incluída como literatura) entre pelo cânone. Procuram não-linearidade na criação literária, acham proibido falar de qualquer coisa que não seja o próprio poema no poema, negam a importância do idioma vernacular e esperam grandes pretensões do mero ato de fazer poesia por fazer. Para completar, veneram a importância das ditas “grandes obras” e citam poetas de prestígio unânime, “canonizados”. Ou seja, querendo se dizer amantes do difícil, acabam recorrendo ao fácil (existe coisa mais fácil que aceitar como “bom” aquilo que já é inquestionadamente aceito por todos?).

Todas as grandes descobertas passam por um primeiro momento em que ficam acessíveis apenas aos pesquisadores mais avançados e depois se tornam de uso comum. Os irmãos Campos foram vanguarda nos anos 50 e mantiveram uma chama acesa durante décadas num país fadado à burrice. Mas hoje em dia, eles são leitura obrigatória do jardim de infância de qualquer poeta brasileiro que se preze. Repetir essas teorias como se fossem a grande resposta depois de haver alcançado a idade adulta, é sintoma de alguma paranóia ou então estamos diante de um estranho conservadorismo, justo ali onde o crítico se quer mais avançado. Pois não foram os próprios poetas concretistas que a princípios dos anos 80 exortavam seus discípulos Paulo Leminski, Waly Salomão, Antônio Risério, Régis Bonvicino a romper com o concretismo?

É preciso acabar com o julgamento e a sanha classificatória dos literaturistas. Isto sim seria romper. O que podemos depreender de todo o processo civilizatório da cultura brasileira até aqui é que fomos, na maior parte do tempo, um povo reverente a tudo o que cremos ser la crème da civilização. No intuito de “fazer parte”, nós brasileiros acabamos boiando. Nos esforçamos incansavelmente para negar nossa barbárie que é, a bem da verdade, nosso maior patrimônio e o que nos coloca na vanguarda dos povos, ao lado dos bororo, os hotentotes, os taraumaras, os maori. Para quê se esconder por detrás das palavras? Se continuarmos a perder tanto tempo com juízos, escolhas do que é bom ou não, classificações e etiquetamentos, logo chegaremos ao século XIX ou ao manicânone. Convenhamos: a linearidade só pode ser um problema para aqueles que têm fé na linearidade de suas vidas. A poesia, “religião original da humanidade” (Novalis) é liberdade da linguagem (Leminski). E liberdade é ter todas as opções à mão, sem interditos. Se é para seguir o pensamento crítico de Ezra Pound, então por favor, que se possa pelo menos “make it new”.