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Juan Gelman, uma despedida

Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)
Foto: Archivo/El Universal (www.eluniversal.com.mx)

lenços

 

“adeusadeus” dizia/sacudindo seu coração como um lenço/
“adeusadeus” dizia/
na bondade da tarde/desfolhando-se
já quase lento como uma árvore/da vereda de defronte

chegavam-lhe ânsias/desastres/vozes
que o tempo mudou/porque também há sóis e luas
em uma voz/e uma voz pode cair como a noite/
deitar/morrer tremendo de astros/levantar

cheia de sol/e os meninos da vereda de defronte
tinham uma tarde na voz/
a tarde em que ele dizia “adeusadeus” a todo mundo/
aos trens que chegam e aos trens que vão/

adeus ao coração que voa e ao vôo do coração/
adeus à árvore da tarde/
ao tempo desfolhado/
adeus ao menino que passou/

do livro Isso (UnB, 2004)

*

Juan Gelman se foi e eu estou um pouco órfão.

A primeira vez que um livro de Juan Gelman apareceu em minhas mãos foi em 1996, trazido por minha amiga Rosana Vallesillo. Interrupciones II. Os poemas logo me entusiasmaram pelo seu ritmo, pelo surrealismo das imagens, pelo clima de tango e pelo amargo humor. Durante dois anos este livro não saiu da minha vista um instante sequer. Se aprendi a falar espanhol, isso se deve em grande parte a esse livro.

Naquele tempo, na minha roda de amigos, intercambiávamos descobertas de poesia que mais nos agradavam. A poesia de Juan Gelman é uma celebração da amizade. Eu queria compartilhar com eles os poemas que lia, mas como fazê-lo sem traduzir? Se hoje me dedico de alguma maneira à arte da tradução, isso começou com os poemas de Juan Gelman.

Em 1998, o site www.tanto.com.br publicou minha tradução de “sobre a poesia”, poema que se tornou um clássico na minha vida e que sempre recito onde quer que eu vá.

Andityas Soares de Moura frequentava a livraria onde eu trabalhava. Falei para ele que gostava desse poeta e quando ele adquiriu o livro Amor que serena termina, primeira antologia de Juan que tinha acabado de sair pela editora Record, em tradução de Eric Nepomuceno (não me lembro o ano) Gelman se tornou também um dos poetas favoritos do meu amigo. Com Andityas, sempre troquei muita correspondência.

Me lembro muito bem de uma tarde de maio de 2003, quando eu estava na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ao acessar meus emails encontrei uma mensagem do Andityas com o título BUEEEEMMMMMMMBBBBAAAAAA!, onde ele dizia com muito entusiasmo que havia conseguido o endereço eletrônico de Juan Gelman. A partir de então, passamos a nos corresponder com ele. Falávamos de vários assuntos, mostrávamos a ele nossas traduções que ele revisava e discutia conosco.

Uma série de acasos fez com que publicássemos o livro Isso pela UnB em 2004. Um trabalho feito em parceria entre os tradutores e que contou com total apoio linguístico e poético do próprio autor. Celebrávamos uma amizade. Depois da publicação, pouco a pouco a correspondência foi se arrefecendo, mas vez por outra dávamos notícias uns dos outros.

Em 2012, enquanto eu preparava parte da programação do Fliv – Festival Literário de Votuporanga, escrevi para Juan no meu tosco español del plata:

“Hoy por la tarde estuve leyendo en el periódico la bonísima noticia de que venís al Brasil en abril! Esto me ha alegrado mucho. He leído allí que estabas abierto a propuestas para participar de eventos literarios en otras ciudades del Brasil.”

Fiz-lhe o convite para participar do Fliv, ao que ele me respondeu dizendo que não poderia:

“No sé qué diario leíste, pero nunca me propusieron eso y a estas alturas lamentablemente no puedo moverme de Brasilia ni llegar antes del 14 para irme el 20. Siento mucho perder esta oportunidad de conocernos de persona.”

Perguntou se eu continuava escrevendo, ao que lhe respondi que se tivesse deixado os versos, hoje estaria louco.

Ele me responde:

“El Fondo de Cultura Económica acaba de publicar mi obra reunida –que también saldrá en Argentina y España  – pero no puedo dejar de escribir por tus mismas razones, porque el que está enfermo y loco es este mundo.”

Não quis perder a oportunidade de “conocer a Juan de persona”: fui a Brasília. Ao final de sua fala, fui falar com ele. “Oye, por qué no venís en la tardecita y tomamos una taza de café?”, me disse.

Cheguei às 18h. Ele estava hospedado na zona dos hotéis de Brasília, ao lado do eixão. Pedimos ao recepcionista para nos indicar o café do hotel, mas estava fechado. Saímos à rua a procura de um lugar. Mas em Brasília não há esquinas, quanto menos cafés. A não ser em shopings. Caminhamos lentamente até o outro lado do eixão, não sem antes enfrentarmos o estranho trânsito daquela cidade. Não encontrando um café, sentamos num trailer para tomar cerveja e conversamos intensamente durante uma hora, fumamos vários cigarros e fomos abordados por pedintes para os quais ele sorria. Não dava dinheiro, mas oferecia cigarros. Me contou de seus exílios, da saudade dos amigos, falamos de poesia, política e trocamos presentes. Quando falamos do divertido filme El lado oscuro del corazón, que tem em seu roteiro poemas dele, ele me disse: “esa película realizó un sueño mío, que era el de pagar la cuenta del bar con un poema. En Buenos Aires, yo solía preguntar al mesero si yo podía pagar con un poema. Y qué lástima, siempre decía no.”

Tinha um metro e oitenta, olhar triste e sorriso de criança. Não vivia de nostalgias, estava atento às coisas de seu tempo, ao mundo de agora, à vida de agora. Tinha uma alma generosa e gostava de se dedicar aos seus afetos. Por fim, acabou me contando algumas impressões que teve a meu respeito nos tempos em que eu estava em Belo Horizonte e mostrou agudíssima percepção do que eu estava vivendo. Nos despedimos, não nos vimos mais, embora eu tivesse o desejo de me organizar (há vários anos que penso nisso) para fazer uma visita em sua cidade adotada, a Ciudad de México.

Sobre esta experiência de Brasília, escrevi em espanhol o poema “Um par de coisas por dizer”, que aparece em português no meu livro mais recente (que por sinal foi prefaciado por ele).

UN PAR DE COSAS QUE DECIR
para Juan Gelman

que no hay la salud del mundo
que seguiremos cantando aunque
que no hay belleza suficiente
que éste exilio es de aquella parte
que el eje lleva gente de hierro
aunque sea hierro anémico
como la vida la vida enferma
que no nos cuesta querer una vida más limpia
aunque en brasilia no haya esquinas donde
tomar una taza de café
que los aires no estarán más buenos
sin el olor del humo
que la memoria no es quizás
ni tango ni rosa engalanada
o labirinto necesario
sino una caricia de la verdad
aunque sea verdad que sea mentira
habría un par de cosas sí
un par de cosas que decir
que seguiremos diciendo

*

Juan foi um personagem importante para a história do mundo. Sua luta pela memória dos desaparecidos durante as ditaduras militares foi muito mais que poesia. Ao encontrar os restos mortais do filho, morto num campo de concentração do Uruguai, não se deu por satisfeito. Mais tarde, encontrou também sua neta, Macarena Gelman e a luta nunca cessou, mesmo assim. Havia ainda mais gente, muito mais gente a ser encontrada.

Como jornalista, fazia o que a maioria da imprensa não faz: investigava e contava sobre as tramas recônditas dos que humilham e ofendem o mundo. Dizia o que ninguém tem coragem de dizer e tratava isso com seriedade. Um pouco dos seus textos jornalísticos podem ser lidos no seu blog www.juangelman.net.

Sua poesia extremamente multifacetada, tinha uma imensa pluralidade de vozes. Vozes por dentro e por fora. Boas para a recitação, dizia o que os ninguéns diriam. Experimentava muito. Criava personas, se reinventava linguisticamente. Se nos anos 1960 buscava o linguajar do tango, o lunfardo e o porteñol (como no livro Gotán), nos anos 1970, fazia incursões nas entranhas da língua. Seu livro Citas y Comentarios trazia recriações de Santa Teresa de Ávila  e San Juan de la Cruz. Outro livro do gênero é Com/posições, que o Andityas traduziu e publicou pela Crisálida. Mas foram as experimentações de Dibaxu que me intimaram a buscar também, em minha própria poesia, as entranhas ocultas da língua brasileira. A poesia dele trazia essa mesma ambiguidade de sua pessoa: escrita de ternura extrema no lugar onde deveríamos encontrar o ódio e o desespero. Uma escrita de violência e calma juntas, sem nunca cair no hermetismo vazio, na falta ou na aparente falta do que dizer.

Embora tenha morrido aos 83 anos, eu tinha a impressão de que ainda viveria muitos anos. Mas a morte não marca dia. Pessoas que me conhecem, quando souberam da notícia, vieram carinhosamente me dizer que ele, certamente, estará em lugar melhor neste momento. Talvez seja egoísta dizer isso, mas a presença de Juan no planeta nos mantinha (a nós que queremos “una vida más limpia que esta”) um pouco protegidos da mentira e do esquecimento.

Hoje, sem Juan, nossa responsabilidade aumenta imensamente. Que os deuses o recebam como merece. O homem que se foi não era apenas um. E teremos que ser inúmeros por ele. Talvez sim, talvez ele esteja em lugar melhor. Mas nós não.

***
Abaixo, mais 3 poemas do livro Isso, porque não há meio melhor de lembrá-lo e prestar-lhe homenagens:
somos

e como é isso que encurva?/
avança o tempo pelas têmporas?/
aqui sangram ao sol
da injustiça/mismamente/

e logo/que pouquinho/
sede que encova estas paredes/
tanta dor/tanta dor/
e já me calo/já

venha/irmãozinho/são seus cavalinhos/
e tudo o que pensam/
e como ficam bonitos
quando falam ao contrário/

*
o pássaro

alma/você ergue seu sonhar?/maldito pelos
que sofreram por sonhar?/e te espancam
para que se cale?/e
dizem que está equivocada?/que

não venha com seus sonhos?/
que há dor suficiente?/que olhe o
pássaro que tranqüilo cruza o céu?/
bota seu ovo no esquecimento?/

*

mundo

da rosa que amo/como cuidarei?/
não lhe faço mal?/
não a estrago?/
não lhe corto os pés?/

e este acabar?/este estar
como não estar?/e como ir-se
de ti/rosa?/
ajuntar a dor ao já sido?/

não entristecer-te a bondade/
que no mais dos dias se queima?/
e nada?/e tudo?/e mesmo nunca?/
e que não chores?/

A poesia de Juan Gelman no Brasil

Dibaxu
Dibaxu/Debajo/Debaixo
Universidade Federal do Ceará, 2009

Traduzido por Andityas Soares de Moura e publicado no final de 2009, Dibaxu traz uma coleção de 29 poemas amorosos. Uma curiosidade: Juan não os escreveu em espanhol, sua língua mãe, mas na língua dos judeus da península ibérica, o sefardita. “Sou de origem judia, mas não sefardita, e suponho que isso teve a ver com o assunto”, comenta o poeta. Trata-se de um idioma antigo, que está nas próprias origens da língua espanhola. É, entre outras coisas, o idioma do Cantar de mio Cid, poema fundador do povo castelhano. Apesar de antigo, o sefardita não é uma língua morta. “O acesso a poemas como os de Clarisse Nikoïdski, novelista em francês e poeta em sefardita, desvelaram essa necessidade que em mim dormia”, revela o poeta, outra vez no “Escólio”, incluído na publicação. E arremata: “a sintaxe sefardita me devolveu um candor perdido e seus diminutivos, uma ternura de outros tempos que está viva e, por isso, cheia de consolo”. O livro brasileiro vem em versão trilíngüe (sefardita, português e espanhol), seguindo o caminho proposto pelo próprio poeta em sua publicação original (sefardita-espanhol).

O livro faz parte da coleção Nossa Cultura e nasce graças ao apoio do poeta Floriano Martins.

Com/posições
Com/posições
Crisálida, 2007

Com/posições foi traduzido por Andityas Soares de Moura. Um livro híbrido, onde Juan Gelman recria a poesia de poetas árabes e judeus antigos fazendo deles ao mesmo tempo parceiros e heterônimos. Assim, os autores “traduzidos” vão desde o rei Davi até a poetas árabe-espanhóis da idade média, o período conhecido como Al-Andaluz. Mas a escolha dos poemas ali presentes não é sem razão: ele se vale das vozes antigas para falar de sua própria condição de exilado.

O livro, além de trazer na íntegra os poemas “Com/posições” (Com/posiciones, no original), traz também um precioso prefácio do tradutor e uma entrevista com Andityas Soares de Moura e Leonardo Gonçalves, originalmente publicada em 2005 no Suplemento Literário de Minas Gerais por ocasião do lançamento do livro Isso.

Isso.
UnB, 2004
O livro Isso não é uma antologia. Gelman o havia publicado pela primeira vez no livro Interrupciones II, reunião, além deste, dos livros Bajo la lluvia ajena (notas al pie de una derrota), Hacia el sur e Com/posiciones. Foi traduzido por mim e por Andityas Soares de Moura, a convite de Henryk Siewierski, da editora UnB e publicado em 2004. Um trabalho apaixonado que teve a grande honra da leitura do próprio autor no ato da tradução. Como a visão dos tradutores sobre a poesia é bastante díspare, acabamos por travar um interessante embate, o que fez com que o trabalho tomasse um caráter todo especial de comunhão democrática, vindo à tona, tanto na tradução quanto na introdução, um pouco da poética de cada um dos três: o mestre, é claro, Juan, e seus alunos: Leo Gonçalves e Andityas.
O livro Isso integra a coleção Poetas do Mundo que já trouxe para o nosso idioma poetas como Tahar ben Jelloun, Czesław Miłosz, Miodrag Pávlovitch, Francis Ponge, Lucian Blaga, e. e. cummings, Edwin Morgan, Yosano Akiko e outros.

Amor que serena, termina?.
record, 2001
Amor que serena, termina? é um belo panorama da poesia de Juan Gelman. Traduzido por Eric Nepomuceno e revisada por Chico Buarque de Holanda. Conhecido por traduzir muito do que há de melhor em literatura latino-americana no Brasil, neste livro, Nepomuceno se entrega a um desafio inédito para ele: traduzir poesia. Conta-se que a record relutou por algum tempo até se convencer a publicar este livro, afinal livro de poesia não vende no país da batucada.

Puentes/Pontes.
Fondo de Cultura Económica, 2004

Este é um interessante projeto da Fondo de Cultura Económica, organizado por Heloísa Buarque de Holanda, Jorge Monteleone y Teresa Arijón. O propósito: pensar a poesia como ponte que une mundos. Trata-se de uma alentada antologia (537 páginas) que inclui poetas brasileiros e argentinos. Na lista: Paulo Leminski, Lamborghini, Affonso Ávila, Bayley e, é claro, Juan Gelman. A tradução deste foi feita pelo poeta e tradutor sérgio alcides e nos dá um ótimo panorama das faces do poliedro que é a poesia de Juan.


Poesia argentina – 1940/1960.
Iluminuras

Esta antologia foi organizada pela acadêmica Bella Jozef, que além deste livro, é autora também de alguns estudos sobre a poesia latino-americana contemporânea. É um panorama da poesia argentina de uma época criativa e febril na poesia daquele país. Mostra o aparecimento do surrealismo, da poesia beatnik, por exemplo. Além do juan (apenas 2 poemas, maravilhosos e muito bem traduzidos, por sinal), tem lá uma boa seleção de outros poetas.

Um poema de Juan Gelman

À PINTURA

Dénise trabalha no Musée du Louvre buffet do 1º piso,
entre mesas ou ingleses ela conduz seu corpo com toda a decisão,
sua bunda é mais sonora que os mundos de Rubens
e é parecida com a esquina das pombas da Avenue des Champs Élysées.

Todo o dia o dia todo se mexendo se mexendo
solta espécie de pássaros que revoam ao seu redor
e a descrevem no ar saudando a grande cidade
antes de regressar docemente à sua carne.

Dénise trabalhava e nunca havia visto a Gioconda
mas seu quarto em Poissonnière
era um país sempre disposto para o amor,
Toda noite seu cheiro batia nas janelas.

Quando abraçava o homem olhava para a porta
como se a ternura fosse entrar de repente,
dela às vezes voavam pássaros escuros
como uma tristeza depois de haver amado.

(do Juan Gelman, tradução provisória de Leo Gonçalves)

A LA PINTURA

Dénise trabaja en el Musée du Louvre buffet del ler. piso,
entre mesas o ingleses ella conduce su cuerpo con toda decisión,
su culo es más sonoro que los mundos de Rubens
y se parece a la esquina de las palomas de l’Avenue des Champs Elysées.

Todo el día todo el día moviéndose moviéndose
suelta especie de pájaros que revolotean a su alrededor
y la describen en el aire saludando al gran pueblo
antes de regresar dulcemente a su carne.

Dénise trabajaba y nunca había visto a la Gioconda
pero su cuarto en Poissonniére
era un país siempre dispuesto para el amor,
cada noche su oleaje golpeaba las ventanas.

Cuando abrazaba al hombre miraba hacia la puerta
como si la ternura fuese a entrar de repente,
a veces se le volaban pájaros oscuros
como una tristeza después de haber amado.

Juan Gelman, no livro Gotán

Dibaxu/Debaixo, Juan Gelman

Acaba de sair pela editora da Universidade Federal do Ceará a primeira edição brasileira do livro Dibaxu/Debaixo de Juan Gelman, com tradução do meu amigo Andityas Soares de Moura. O livro faz parte da coleção Nossa Cultura e nasce graças ao apoio do poeta Floriano Martins.

Dibaxu é um trabalho singular. Escrito entre 1983 e 1985, traz uma coleção de 29 poemas amorosos. Uma curiosidade: Juan não os escreveu em espanhol, sua língua natural, mas na língua dos judeus da península ibérica, o sefardita. “Sou de origem judia, mas não sefardita, e suponho que isso teve a ver com o assunto”, comenta o poeta. Trata-se de um idioma antigo, que está nas próprias origens da língua espanhola. É, entre outras coisas, o idioma do Cantar de mio Cid, poema fundador do povo castelhano. Apesar de antigo, o sefardita não é uma língua morta. “O acesso a poemas como os de Clarisse Nikoïdski, novelista em francês e poeta em sefardita, desvelaram essa necessidade que em mim dormia”, revela o poeta, outra vez no “Escólio”, incluído na publicação. E arremata: “a sintaxe sefardita me devolveu um candor perdido e seus diminutivos, uma ternura de outros tempos que está viva e, por isso, cheia de consolo”. O livro brasileiro vem em versão trilíngüe (sefardita, português e espanhol), seguindo o caminho proposto pelo próprio poeta em sua publicação original (sefardita-espanhol).

Há poucos livros de Juan Gelman publicados no Brasil. O primeiro foi o trabalho de Eric Nepomuceno, a belíssima antologia Amor que serena, termina?, ao que se seguiu Isso, publicada pela UnB e traduzida por mim e pelo Andityas (ver capa ao lado). Pela editora Crisálida, o livro Com/posições, também tradução de Andityas. Como o tradutor bem lembra, Juan Gelman possui uma das características mais interessantes (a meu ver) para um poeta no mundo contemporâneo: a diversidade. Dono de variadas técnicas na criação poética, foi uma das mais poderosas vozes nos anos 70 e 80, período de resistência contra a ditadura militar argentina. Despaegado dos rótulos, o premiadíssimo Juan Gelman tem mostrado sempre novas e surpreendentes faces ao longo de seus mais de 30 livros. Segundo consta, seus poemas eram memorizados e recitados às escondidas para os presos políticos, circulavam como alimento para a revolta entre os ativistas de esquerda e davam uma nota de esperança aos que continuavam sonhando uma Argentina livre. O escritor Julio Cortázar achava que “Talvez o mais admirável [na poesia de Gelman] seja sua quase impensável ternura ali onde mais se justificaria o paroxismo do rechaço e da denúncia, sua invocação de tantas sombras por meio de uma voz que sossega e arrulha, uma permanente carícia de palavras sobre tumbas ignotas”. Seu poema “Gotán” (tango na gíria lunfardo), escrito nos anos 60, está entre os mais conhecidos poemas argentinos.

A escolha de Andityas Soares de Moura em traduzir justamente os poemas sefarditas se faz pela mais pura confluência. Admirável conhecedor da língua portuguesa e amante da diversidade, o poeta-tradutor publicou, em 2003, o livro OS enCANTOS, um livro único no Brasil, com versos escritos em português, galego, provençal, catalão, francês, italiano, latim. Uma desbabel neolatina, na qual se entrevê, como em Juan Gelman, uma busca apaixonada pelas raízes da língua. Como se buscar as raízes da língua fosse buscar as próprias raízes da poesia. Para completar a edição, o leitor de Dibaxu/Debaixo ganha um último presente: uma série de poemas de autoria do próprio Andityas nos quais ele assume ter-se deixado influenciar pela poética social de Juan Gelman.

Dibaxu/Debaixo foi uma das melhores coisas que recebi neste final de 2009. Tomara que chegue às livrarias do sudeste. Para quem quiser uma palhinha, aí vai:

XX.

não tens porta/chave/
não tens fechadura/
voas de dia/
voas de noite/

o amado cria o que se amará/
como tu/chave/
tremendo
na porta do tempo/

******

no tenis puarta/yave/
no tenis sirradura/
volas di nochi/
volas didia/

lu amadu cría lu qui si amará/
comu vos/yave/
timblandu
nila puarta dil tiempu

******

no tienes puerta/llave/
no tienes cerradura/
vuelas de noche/
vuelas de día/

lo amado crea lo que se amará/
como tú/llave/
temblando
en la puerta del tiempo/

A ciência parcial da palavra

O livro Com/posições de Juan Gelman, foi publicado em 2007 pela editora Crisálida, em tradução de Andityas Soares de Moura. Além dos poemas que Juan publicou sob esse título, o livro traz também uma entrevista que o poeta concedeu a mim e ao Andityas na ocasião do lançamento do livro Isso (no início de 2005), publicada originalmente no Suplemento Literário de Minas Gerais e disponível aqui no Salamalandro. Em setembro de 2006, no dia exato do lançamento de Com/posições, escrevi esse artigo que permaneceu inédito, mas que na minha opinião, passado todo o tempo que você pode contar, continua atual.

A ciência parcial da palavra

Leonardo Gonçalves

É possível que nunca o tema da Torre de Babel tenha surgido com tanta força como na atualidade. Vivemos num mundo onde as fronteiras não impedem o contato entre pessoas de diferentes nações e idiomas. A tecnologia digital nos possibilita uma aproximação que nenhum fabricante de lentes ou telefones jamais pôde supor. Essa proximidade tem algo de Babel, pois ao mesmo tempo em que se comunica, também se incomunica. E o próprio ato de comunicar-se, transforma-se facilmente em tormento, em desacerto, em erro.

Babel, de acordo com o Gênesis, significa “confusão”. O castigo para a audácia humana. A incomunicabilidade como punição para que o homem se disperse pelo mundo. No entanto, somos testemunhas de que a variedade lingüística não é empecilho para a comunicação. Os amantes, os internautas e os poetas sabem disto muito bem. E o contrário também acontece: pessoas de um mesmo idioma muitas vezes se compreendem mal. Os políticos, as famílias e muitos leitores de poesia conhecem isso de perto.

Se não é o idioma que separa a compreensão da incompreensão, haverá algo que o determine? Continue lendo A ciência parcial da palavra

artículos de prensa

juan gelmanque eu sou um imenso admirador do poeta juan gelman – aquele poeta argentino que foi exilado na ditadura, teve parentes e amigos desaparecidos pela ditadura militar e a neta raptada por um policial que trabalhava no campo de concentração uruguaio onde marcelo (seu filho) e a nora (que chegou lá grávida) estava preso – isso já é um fato mais que notório.

o que poucos sabem é que esse mesmo poeta é também jornalista, e escreve artigos bombásticos (ao menos para nós, do hemisfério sul) em torno ao que acontece nas entrelinhas do poder norte-americano. me parece surpreendente que discussões do nível das que tenho lido na bitácora, nunca tenham sido cogitadas aqui no país da batucada. talvez porque o brasil não precisa ter senso crítico. talvez porque o arnaldo jabor admira demais os estados unidos. ou quem sabe porque as batatas fritas pringles são as mais gostosas do mundo. seja lá o motivo, as discussões em torno ao 11 de setembro (data que considero a mais importante desde o dia em que eu nasci), não tem o mínimo rigor aqui na maravilhosa imprensa brasileira. Continue lendo artículos de prensa

algo indecifravelmente veloz

algo indecifravelmente veloz - andityas soares de moura

na onda livros livros livros, a linda notícia: algo indecifravelmente veloz, antologia de poemas do parceiro andityas soares de moura está sendo lançada em portugal pela editora edium. e vai repleto de louvações: “um dos nomes mais representativos da nova vaga da poesia brasileira”, se vê lá no blog da editora. andityas, que já tem seu lentus in umbra publicado e traduzido na espanha, esteve na cidade do porto no último dia 12 para o lançamento. e não deixa pra menos: sua tradução do livro dibaxu de juan gelman também acaba de sair pela mesma editora. parabéns. 2008 começa mesmo em alta rotação.

saiba mais, clicando aqui: www.ediumeditores.blogspot.com

hino da vitória em certas circunstâncias

de madrugada em pleno esplendor
quem senão eu como cachaças destruindo suas vítimas amadas
para dar luz à indecisa claridade de suas mesas
quem senão eu com papeizinhos luxuosas descrições feitas para calar
ou a palavra mesa as mentiras
os metros de mentiras para vestir os cotovelos do embriagado
os alfaiates estão tristes porém se cose e canta
mente-se em quantidade irmãos meus fica bela a feiúra
amorosas as pústulas grande dignidade a infâmia
no pássaro no cantor no distraído cresceram répteis
com assombro contempla sua grande barbaridade
hurrah por fim ninguém é inocente
cavalheiros brindemos as virgens não virgam
os bispos não bispam os funcionários não funcionam
tudo o que apodrece em ternura dará
olho meu coração inchado de desgraças
tanto lugar como teria para as belas aventuras

juan gelman (tradução improvisada: leo gonçalves)

deu na folha de são paulo

Poeta argentino Juan Gelman ganhou o Prêmio Cervantes de 2007

sexta-feira, 29 de novembro de 2007

O escritor argentino Juan Gelman, ganhador do Prêmio Cervantes de Literatura 2007 entregue hoje, disse que está “muito emocionado e comovido”, mas não esperava sair vencedor, dada a “estatura e valor dos demais candidatos”.

Em declarações à agência Ansa feitas de sua casa na Cidade do México (onde está radicado desde 1976), Gelman se mostrou satisfeito em ter obtido o reconhecimento “por aquilo que significa [o prêmio] no contexto da literatura hispano-americana”.

“Me comoveu, eu não esperava. Depois que li a lista de candidatos, todos escritores de primeira linha, como Juan Goytisolo, Mario Benedetti, Blanca Varela, José Emilio Pacheco ou Juan Marcé, disse a mim mesmo: “é muito difícil”, contou o poeta argentino.

Para o autor de “Velorio del Solo” (1961) e “Gotán” (1962), ganhar um prêmio desta magnitude “é realmente um grande estímulo, sem dúvida, porque condensa um reconhecimento pelo que foi escrito”.

“O fato é que nenhum prêmio nem reconhecimento escreve por alguém, quem escreve é esse alguém. De qualquer jeito, o estímulo é muito grande”, afirmou.Ao ser consultado sobre a possibilidade de ser indicado, ou pelo menos aspirar, ao Prêmio Nobel de Literatura, o poeta afirmou que “a Suécia está muito longe do México e também da Argentina”. Gelman também falou de sua trágica experiência com a ditadura na Argentina, quando seqüestraram seu filho, Marcelo Ariel, e a esposa dele, María Claudia García (grávida na época), em agosto de 1976. Em outubro, Marcelo foi encontrado em um tambor de aço flutuando no Rio da Prata. Já de sua nora María Claudia, só foi devolvida a filha, nascida. Segundo Gelman, o acontecimento lhe permitiu “uma espécie de pacificação interior, para ver certas coisas”.

Firme opositor das ditaduras de Argentina e Uruguai, e de sua impunidade, Gelman foi obrigado a fugir da repressão desatada pelo regime argentino (1976-1983) e se exilar do país por 12 anos. “[México] é um país que conheço desde o ano de 1961, que foi a primeira vez que passei, e estive por aqui quando era a região mais transparente, de verdade”, lembrou.

A fala do poeta aponta ao título do romance de Carlos Fuentes, “La Región Más Transparente”, em referência ao céu da Cidade do México, onde dizia sentir-se em “em casa”. Juan Gelman também brincou ao afirmar que adora a “vitamina T”, como se denominam popularmente no México bebidas e comidas típicas: “tequila, tacos, tortas e tamales”, porque “é excelente, barata e abundante”.

O escritor recebeu, em 1997, o Prêmio Nacional de Poesia da Argentina e, em 2000, o Prêmio de Literatura Latino-americana e do Caribe Juan Rulfo, e possui livros traduzidos em mais de dez idiomas.

Ele garante que não foi convidado à Feira Internacional do Livro de Guadalajara, onde se reúnem vários escritores do mundo todo. Por outro lado, se mostrou entusiasmado por ter sido convocado a dar aulas na cátedra “Julio Cortázar”, nesta mesma cidade mexicana: “uma distinção que aprecio muito”, completou.