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Centenário de Léon-Gontram Damas

2012 é o ano do centenário do poeta guianense Léon-Gontram Damas, um dos fundadores do movimento da Negritude. Autor menos conhecido e evocado que os seus dois colegas Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, Damas foi uma figura diferente no grupo. Boêmio, articulado, chegou a Paris antes dos outros dois e por lá perambulava livremente. Se aproximou dos surrealistas no final dos 1920, especialmente de Robert Desnos, com quem parecia se identificar mais.

Antes ainda do surgimento da Negritude, fez parte do grupo Légitime Défense, ao lado do poeta antilhano Étienne Léro, tendo assinado um dos textos da revista que trazia o nome do grupo em 1931. Por lá também conheceu os poetas da Harlem Renaissance, especialmente Langston Hughes e Claude McKay, que frequentavam os salões das irmãs Nardal, ponto de encontro dos negros presentes na Paris de então.

Césaire se refere a ele com grande admiração como um homem dotado de toda a alegria, a intuição e a atitude vivazes de um negro órfão de sua terra natal, a Guiana, assim como de uma África perdida e dilacerada na memória da pele.

Seu livro Pigments (“batimentos cardíacos rumo a altas nevralgias”, segundo Desnos), publicado em 1937, é considerado a obra fundadora da Negritude. Ganhou enorme destaque na época, especialmente para os que assistiam com temor o triunfo dos fascismos.

Reproduzo abaixo um dos poemas de Léon-Gontram Damas em tradução minha.

LOGO MAIS

Logo mais
não terei apenas dançado
logo mais
não terei apenas cantado
logo mais
não terei apenas roçado
logo mais
não terei apenas suado
logo mais
não terei apenas dançado
cantado
roçado
suado
roçado
suado
roçado
cantado
dançado

Logo mais

***

BiENTÔT

Bientôt
je n’aurai pas que dansé
bientôt
je n’aurai pas que chanté
bientôt
je n’aurai pas que frotté
bientôt
je n’aurai pas que trempé
bientôt
je n’aurai pas que dansé
chanté
frotté
trempé
frotté
trempé
frotté
chanté
dansé

Bientôt

6º Fan – Festival de Arte Negra

O Fan é sempre um acontecimento instigante. Conceitualmente bem estruturado, chegou à sua sexta edição aos trancos e barrancos, superando a (má) vontade política e todo tipo de percalço próprio de tudo o que se tenta fazer culturalmente no país. No seu longo histórico, já teve presenças inesquecíveis como a dançarina senegalesa Germaine Acogny (em 2006) e seu filho Patrick Acogny (em 2009). Inesquecível foi também a enorme exposição da memória da escravidão (em 2002, se não me engano), a revista Roda, o show de Jards Macalé com as Orquídeas.

A programação deste ano não deixa para menos. Homenagem ao Mestre Jonas, leitura-concerto com os poetas Abreu Paxe (Angola), Nina Rizzi (Fortaleza), Ronald Augusto (Porto Alegre) e Sebastião Salgado (Rio de Janeiro), oficinas de dança e de moda, muita música. Destaque especial para a presença da belíssima cantora Susana Baca, a embaixatriz da música afro-peruana e do artista pop senegalês Youssou Ndour, atual ministro da cultura de seu país.

Uma festa para quem (como eu) gosta de diversidade e exuberância.

Clique no link para saber mais e mais sobre o Fan: www.fanbh.com.br

Germaine Acogny: Songook Yaakaar

“Um pedaço de pau na água não vira jacaré”.
Ditado africano

Germaine Acogny está reflexiva e dialogante neste espetáculo, que esteve em cartaz por dois dias no Sesc Santos como parte da Bienal Sesc de Dança. O que está em jogo em meio aos seus movimentos, parece ser o lugar da África no mundo de hoje. Um mundo globalizado no qual a vida ávida sonora se confunde com os conceitos que nos construíram. A ideia-clichê de Nicolas Sarkozy de que “o drama da África é que o homem africano não entrou suficentemente na história”, uma falsa verdade, aparece aqui para discutir exatamente isso: o lugar da identidade negra num mundo que parece querer colocar de volta as coisas nos seus supostos lugares.

Germaine diz ser senegalesa e francesa. A plateia ri. Por que? Como aceitar binacionalidades? Como compreender o sentido da diáspora negra hoje? E principalmente (e esse parece ser o sentido da École des sables, sua escola em Dakar), como recriar o olhar identitário ultrapassando os discursos mais comuns e produzindo ali uma beleza que vá para além do mero exotismo?

Colocando em crise as possíveis leituras da identidade, ao final do espetáculo, que assistimos no dia 07 de setembro, Germaine recorda ao público que aquele era o dia da Fête de l’indépendance brasileira. E para celebrar, convida todos a dançarem também. Curioso é que o significado daquela independência parecia estar vazio na plateia. Por que? Quem for brasileiro e souber, que me responda.

Birago Diop na Modo de Usar & Co.

Os que faleceram jamais se foram
Eles estão na Sombra que se ilumina
E na sombra que se enegrece.
Os Mortos não estão sob a Terra
Eles estão na Árvore que freme,
Estão na Madeira que geme,
Estão na Água que dorme,
Estão na Cabana, estão na Massa
Os mortos não estão mortos.

Birago Diop, “Sopro” (Souffle)

Na franquia eletrônica da Revista Modo de Usar e Co., editada por Ricardo Domeneck, Fabiano Calixto, Marília Garcia e Angélica Freitas, apareceram hoje 3 poemas de Birago Diop, traduzidos por mim.

Pouca gente o conhece, mas a figura de Birago Diop tornou-se um ícone para mim. Amigo de Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, era um poeta bissexto. Celebrizou-se com seu livro Les Contes d’Amadou Koumba (1947), cujo personagem central é um griot.  Na sua minibiografia na Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, publicada em 1948 com prefácio de Jean-Paul Sartre, Senghor afirma: “é mais conhecido como contista. Mas na África Negra, a diferença entre prosa e poesia é mais uma questão de técnica e quão magra!”

Gosto muito de seu livro Leurres et lueurs (Présence Africaine, 1967). Especialmente os poemas “Souffle” [Sopro] e “Viatique” [Viático], nos quais o fetichismo pulula forte. Aí está um poeta para o paideuma (ou mãedeuma, segundo as tradições africanas) do Poemacumba.

Para você ler os poemas na Modo de Usar & Co., clique neste link:  www.revistamododeusar.blogspot.com

Léon Gontram Damas 99 anos

saldo

tenho a impressão do ridículo
quando estou nesses sapatos nesse smoking
nessa gravatas nesses colarinhos
nesses seus monóculos nesse chapéu-coco

tenho a impressão do ridículo
com meus artelhos que não foram feitos para
transpirar da manhã até a noite que despe
com tanta malha me enfraquecendo os membros
e arrebata de meu corpo sua beleza de tapa-sexo

tenho a impressão do ridículo
com meu pescoço em chaminé de usina
com essas enxaquecas que cessam
cada vez que saúdo alguém

tenho a impressão do ridículo
em seus salões em seus modos
suas reverências suas fórmulas
sua múltipla necessidade de macaquices

tenho a impressão do ridículo
em tudo o que eles contam
até que te servem à tarde um pouco de água quente
e docinhos resfriados

tenho a impressão do ridículo
com as teorias que eles temperam
ao gosto de suas necessidades de suas paixões
de seus instintos abertos à noite em forma de esteira

tenho a impressão do ridículo
entre eles cúmplice entre eles gigolô
entre eles degolador as mãos temerosamente vermelhas
do sangue de sua civilização

solde
j’ai l’impression d’être ridicule/dans leurs souliers dans leur smoking/dans leur plastron dans leur faux col/dans leur monocle dans leur melon//j’ai l’impression d’être ridicule/avec mes orteils qui ne sont pas faits pour/transpirer du matin jusqu’au soir qui déshabille/avec l’emmaillotage quim’affaiblit les membres/et enlève à mon corps sa beauté de cache-sexe//j’ai l’impression d’être ridicule/avec mon cou en cheminée d’usine/avec ces maux de tête qui cessent/chaque fois que je salue quelqu’un//j’ai l’impression d’être ridicule/dans leurs salons dans leurs manières/dans leurs courbettes dans leurs formules/dans leur multiple besoin de singeries//j’ai l’impression d’être ridicule/avec tout ce qu’ils racontent/jusqu’à ce qu’ils vous servent l’après-midi un peu d’eau chaude/et des gâteaux enrhumés//j’ai l’impression d’être ridicule/avec les théories qu’ils assaisonnent/au goût de leurs besoins de leurs passions/de leurs instincts ouverts la nuit en forme de paillasson.//j’ai l’impression d’être ridicule/parmi eux complice parmi eux souteneur/parmi eux égorgeur les mains effroyablements rouges/du sang de leur civilisation/

Léon Gontram Damas foi, ao lado de Léopold Sédar Senghor e Aimé Césaire, um dos principais mentores da négritude, movimento responsável por uma das melhores estetizações das lutas contra o racismo no século XX. Nasceu no dia 28 de março de 1912. Hoje, 28 de março de 2011, ele comemoraria seus 99 anos.

Édouard Glissant: un adieu, un salut

Esta semana, faleceu uma das figuras mais interessantes do “tout-monde”. Édouard Glissant: poeta, filósofo, anticolonialista ativo, romancista, alquimista do verbo, foi (e é) um dos melhores teóricos da diferença. Era ele quem dizia:

Não são só cinco continentes, há também os arquipélagos, uma floração de mares, evidentes, cujos mais ocultos já nos comovem. Não só quatro raças, mas não é de hoje, surpreendentes encontros (…). Não somente grandes civilizações, ou antes: a própria medida daquilo que chamamos de civilização cede à mistura dessas culturas das humanidades, vizinhas e implicadas. Seus detalhes engendram em toda parte, de toda parte, a totalidade. O detalhe não é um aspecto descritivo, é uma profundeza de poesia, ao mesmo tempo que uma extensão não mensurável.

Recentemente andei envolvido com a leitura do seu incrível livro Philosophie de la relation [Filosofia da relação], de onde saiu a citação acima. É uma descrição da poesia em extensão não descritiva. Ali são propostas inusitadas poéticas para a leitura do mundo e um abismo vertiginoso de palavras.

Segundo ele, dentro da glote que fala e cala, já vibra o poema original.

Eis que se ergueu uma palavra sagrada. Ora o poema, então o poema, gerado de si mesmo, começou a ser reconhecido. Assim deve ter sido pronunciada, talvez, nas pré-histórias de todas as literaturas do mundo, esse mesmo começo.

Ele se considerava um aimant du monde, um amante do mundo. Acreditava que “as quedas-d’água já vibram na fonte”. E defendeu em sua teoria a ideia de um mundo multifacetado até o infinito. A construção de uma universalidade não universal onde cada unidade valeria por um universo inteiro. Nada do típico medo do outro ou da vontade de dominar pela força para anular o diverso.

Na diversidade consentida, os diferentes não renunciam a se definir alhures, enquanto diferentes de si, mas não temem tampouco buscar, de maneira inopinada ou nova, ser identificáveis ao outro. É a eminência da diversidade de se estar assim multiplicado na ação e na paixão pelo mundo, mas de se achar somente reforçado quando ela se assinala ao reconhecimento de todos. Somente esse saber pode transformar. Nós estávamos, estaríamos ainda, imóveis no único. E o próprio desconhecimento de nossos saberes, quando são comuns, nos retira do lugar.

Embora ele tenha se despedido do mundo aos 83 anos no dia 03 de fevereiro, Glissant fará falta neste mundo 1984 que nos espreita.

Poemas do Haiti no Suplemento

A edição de junho/2010 do Suplemento Literário de Minas Gerais estampou alguns poemas que traduzi do poeta haitiano Léon Laleau, um dos que mais admiro na língua francesa. Bem pouco conhecido, Laleau escrevia com ironia e bom humor.

O número 1330 do Suplemento traz ainda a participação de dois amigos: o Cleber Araújo Cabral, que, em parceria com Adriana Araújo Figueiredo, fala do escritor mineiro Wander Piroli, e o Eclair Antônio Almeida, que fala sobre e traduz Maurice Blanchot. E tem também poemas, contos, ensaios.

Para quem não sabe, o Suplemento é uma publicação do governo de Minas Gerais e agora é bimestral. A distribuição é gratuita, tanto na forma impressa quanto na virtual, que fica disponível no site da secretaria de cultura do estado. Quem quiser baixar o pdf, é só clicar aqui (ou na capinha do suplemento aí acima).

Retour au pays de Patrick Acogny

Este ano o FAN – Festival de Arte Negra aconteceu em situação mais ou menos periférica. Digo mais ou menos porque a programação estava bonita, com convidados ilustres e competentes. As instalações bem feitas e bem organizadas, com dois grandes palcos e um Ojá (mercado em yorubá). Periférica porque foi empurrado para a orla da Lagoa da Pampulha. Embora bonito, um lugar fora de mão, com poucos ônibus. Difícil para quem não estivesse de carro e quisesse acompanhar a festa até mais tarde. Todo o mérito para os organizadores, o Rui Moreira e o Adyr Assumpção que, pelo jeito, levaram na cara e na coragem. Uma pena o novo prefeito não haver percebido que o FAN é a menina dos olhos dos festivais belorizontinos.

No vídeo acima, feito pela rádio Ojá, alguns momentos do espetáculo “Retorno ao país natal”, apresentado pelo Coletivo FAN da Dança (criado especialmente para o evento) e dirigido pelo coreógrafo senegalês Patrick Acogny. Quem acompanha é o grupo Uakti em colaboração com o griot Oumar Fandi Diop. Leo Gonçalves acabou colaborando um pouco também, enviando as traduções dos poemas de Léopold Sédar Senghor, Aimé Césaire e Léon Gontram Damas que são recitados pelas dançarinas durante o espetáculo.

palavra macumba no FORUMDOC 2009

forumdoc 2009

A programação do 13º FORUMDOC.BH.2009 – está uma delícia, com destaque especial para a Mostra Cineastas Africanos que me faz brilhar os olhos. Quem quiser dar uma olhada, sugiro conhecer a página do Festival, com seu projeto visual deslumbrante.

De quebra, no catálogo, o leitor encontrará a tradução de um poema de Aimé Césaire feita por mim, o “palavra macumba“. Que, diga-se de passagem, é um dos meus favoritos.

www.forumdoc.org.br/2009/