Uma arte e traduções

Há algum tempo atrás, um amigo me escreveu pedindo que traduzisse o poema “Uma arte” de Elizabeth Bishop.

“Você conhece, Leo?”

Conhecia de vista. Fui relê-lo. Procurei no oráculo:

One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster,

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like a disaster.

De fato, gostava muito do poema. Meu amigo dizia não ter lido nenhuma tradução que lhe deixasse satisfeito. Quanto a mim, ao tentar traduzi-lo, me deparei com vários problemas: achava difícil transpor a métrica para o português, mantendo o jogo fixo de rimas e o discurso direto. Além de tudo isso, o poema tem um ritmo que parece meio solene-sem-sê-lo. Fui procurar ver quem o havia traduzido e encontrei esta pérola neobarroca de Horácio Costa:

A arte de perder não tarda aprender;
tantas coisas parecem feitas com o molde
da perda que o perdê-las não traz desastre.

Perca algo a cada dia. Aceita o susto
de perder chaves, e a hora passada embalde.
A arte de perder não tarda aprender.

Pratica perder mais rápido mil coisas mais:
lugares, nomes, onde pensaste de férias
ir. Nenhuma perda trará desastre.

Perdi o relógio de minha mãe. A última,
ou a penúltima, de minhas casas queridas
foi-se. Não tarda aprender, a arte de perder.

Perdi duas cidades, eram deliciosas. E,
pior, alguns reinos que tive, dois rios, um
continente. Sinto sua falta, nenhum desastre.

– Mesmo perder-te a ti (a voz que ria, um ente
amado), mentir não posso. É evidente:
a arte de perder muito não tarda aprender,
embora a perda – escreva tudo! – lembre desastre.

(Tradução de Horácio Costa)

Na verdade, esta versão me pareceu extremamente careta, mas dadas as dificuldades do trabalho, achei compreensível. A métrica me soa dura, as rimas se apertam no final das frases para aparecerem. De repente aparece uma palavra em total desuso: “embalde”, há imperativos conjugados com o tu (“pratica”, que na mesma estrofe encontra-se com um “pensaste”), mas o “perca” do começo (provavelmente para não perder o tom de imperativo) é relativo a você. O que me soou menos interessante nesse trabalho do Horácio foi o “não tarda a aprender” para se referir ao simples, claro e direto “a arte de perder não é difícil de dominar”.

Me lembrei que Paulo Henriques Britto havia traduzido um livro de poemas da Bishop. Escarafunchei mais um pouco e encontrei esta excelente tradução que, embora ainda com seus percalços (toda tradução é uma arte de perder), me pareceu profundamente próxima das conspirações do original:

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

(Tradução de Paulo Henriques Britto)

Estava ligeiramente saciado. Não totalmente satisfeito. Lendo e relendo ambas, original e tradução, me lembrava daquela ideia que remete tanto a Walter Benjamin quanto a um pequeno texto de Juan Gelman na introdução ao livro Com/posições: a de que a beleza da tradução se encontra adiante, uma vez que dois poemas foram colocados lado a lado.

Esta ideia mesma me trazia o eco de um poema que habitava as minhas memórias sonoras. Fui buscá-lo e de repente me dei conta de que “Poesia Hoje” de Waly Salomão é também uma transversão não apenas do poema, mas também do espírito do poema. Acontece que o Waly, insatisfeito com a mera sensação de perda, resolve o gesto com um amplo latrocínio. Não se conforma com a mera perda. Ele quer mais que isso. Para ele, “não é difícil aprender a arte de perder”, mas “é mister roubar a luz/que cobre/montanha e mar”. Afinal, se tradução é perda, poesia é isto: roubo.

Poesia Hoje
(Waly Salomão)

1

Serena e sem catástrofe.
Não é difícil aprender a arte de perder.

2

Arrasta o dia na areia sua rotina normalmente.
Prestação de contas?
Apólice de capitalização?
Central de recados?
Adquirir o Saint-Clair das Ilhas ?
Fuzarca, carnavais e cinzas.

3

O que existe de valor por aqui exceto a paisagem?
Incontida volúpia de saquear.
É mister roubar. É mister roubar a luz
Que cobre
Montanha e mar.
Roube!

bishop1

Um comentário em “Uma arte e traduções

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